Estes audaciosos servos do Evangelho e mártires da fé «constituem como que um grande afresco da humanidade cristã […]. Um afresco do Evangelho das Bem-Aventuranças, vivido até ao derramamento do sangue» (S. João Paulo II, Comemoração dos Testemunhos da fé no século XX, 7 de maio de 2000).
Por Marie Symington*
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No dia da Exaltação da Santa Cruz, o Papa Leao XIV presidiu na Basílica de São Paulo Fora dos Muros uma celebração em memória dos mártires cristãos e testemunhas da fé dos últimos 25 anos. Este evento jubilar ofereceu uma preciosa oportunidade para reconsiderar o que significa ser mártir na Igreja Católica e o vínculo que une o martírio, o batismo e a salvação das almas.
A palavra “mártir” deriva do termo grego μάρτυς (màrtus), que indica uma testemunha em grau de testemunhar um acontecimento do qual tem conhecimento direto por experiência pessoal. Nesse sentido, os Apóstolos foram “mártires” da vida e dos ensinamentos de Cristo e, mais importante ainda, de Sua morte e ressurreição.
À medida que a Igreja crescia, o termo martus passou a ser usado por muitos autores cristãos para indicar uma pessoa que, apesar de nunca ter visto ou ouvido Jesus Cristo durante sua vida, acreditava firmemente na verdade da fé cristã e aceitava a morte em vez de negá-la.
Jesus promete que o martírio assegura a salvação, como lemos no Evangelho de Lucas: “Quem perder a sua vida por minha causa, salvá-la-á” (Lucas 9, 34) e no Evangelho de Mateus: “Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus! Bem-aventurados sereis quando vos caluniarem, quando vos perseguirem e disserem falsamente todo o mal contra vós por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus, pois assim perseguiram os profetas que vieram antes de vós”. (Mateus 5, 10-12).
De fato, o mártir dá testemunho de Cristo e é salvo da morte eterna e da separação de Deus, precisamente porque Cristo deu testemunho ao mundo e abriu as portas do céu através da sua Paixão e morte.
Santo Tomás de Aquino considerava o martírio um ato de virtude: «É tarefa da virtude manter-se no bem que é próprio da razão. Ora, esse bem consiste na verdade, objeto próprio dela; e na justiça, seu efeito específico, como é evidente pelo que já foi explicado. Ora, o martírio consiste no fato de alguém que persiste firmemente na verdade e na justiça contra a violência dos perseguidores. Portanto, é evidente que o martírio é um ato de virtude»([44147] IIª-IIae, q. 124 a. 1 co.).
O próprio Tomás de Aquino considera uma possível objeção que poderia ser levantada a esta afirmação: uma vez que um ato virtuoso só pode ser qualificado como tal se for voluntário e direcionado para o bem, e uma vez que nem todos os atos de martírio são estritamente voluntários, como no caso do Massacre dos Inocentes, parece que nem todo ato de martírio pode ser considerado um ato de virtude.
A resposta de Tomás de Aquino a esta observação pode lançar luz sobre a face mais íntima do martírio na fé cristã:«É melhor responder que essas crianças assassinadas alcançaram, pela graça de Deus, a alegria do martírio, que os outros merecem por sua própria vontade. De fato, o derramamento de sangue por Cristo substitui o batismo. Por isso, assim como os méritos de Cristo fazem com que outras crianças alcancem a glória pela graça batismal, também produzem nas crianças assassinadas a obtenção da palma do martírio.» ([44148] IIª-IIae, q. 124 a. 1 ad 1)
É precisamente a graça de Deus a ser crucial para reconhecer a natureza e a dinâmica própria do martírio cristão: também Tomás de Aquino chega à conclusão que os atos de martírio são, de fato, atos de virtude, uma virtude não alcançada pelo próprio esforço, como uma conquista pessoal, mas recebida e alimentada como um dom da graça.
Tomás traça um paralelo entre a graça de Deus no Sacramento do Batismo e Sua graça no martírio, referindo-se ao sermão de Santo Agostinho de Hipona sobre a Epifania:
“Somente aqueles que acreditam que o batismo não traz benefício algum a outras crianças questionarão a tua coroa por causa dos sofrimentos que suportas por Cristo. Não tinhas idade para crer na futura paixão de Cristo, mas tinhas a carne para enfrentar a paixão por Cristo.” (De Diversis l xvi)
Santo Agostinho também fala da graça salvadora recebida por meio do martírio em seu livro “A Cidade de Deus”:
«A morte que qualquer pessoa, mesmo sem ter recebido o banho da regeneração, sofre para dar testemunho de Cristo, tem eficácia para a remissão dos pecados, como se estes tivessem sido remidos na fonte batismal. Jesus disse: Se alguém não nascer de novo da água e do Espírito, não entrará no reino dos céus (17 – João 3, 5). Mas em outro texto, ele fez uma exceção para os mártires, pois disse de forma não menos geral: Àquele que der testemunho de mim diante dos homens, eu também darei testemunho diante de meu Pai, que está nos céus (18 – Mateus 10, 32).» (Cidade de Deus 13:7)
Muitos autores cristãos consideram o martírio um “batismo de sangue”.
– São João Crisóstomo: “Não se surpreendam se eu chamar o martírio de batismo, pois também aqui o Espírito vem com grande rapidez, e ocorre a apagamento dos pecados e uma purificação maravilhosa e admirável da alma. E assim como aqueles que são batizados são lavados na água, também aqueles que são martirizados são lavados no próprio sangue.” (Panegírico sobre São Luciano 2 [387 d.C.])
– Tertuliano: «Certamente, também para nós há um segundo ato de ser lavado, também ele único, a saber, o batismo de sangue, do qual o Senhor falou quando disse: ‘Tenho um batismo com o qual devo ser batizado’, embora já tivesse sido batizado. Pois, como escreveu João, ele veio com água e sangue: para ser batizado com água, glorificado com sangue. Portanto, para nos fazer chamados pela água e escolhidos pelo sangue, ele fez com que esses dois batismos fluíssem do seu lado trespassado, para que aqueles que creem em seu sangue sejam lavados com água, e aqueles que foram lavados com água também sejam lavados com sangue. E este batismo representa a lavagem não recebida e a restaura se for perdida.» (Batismo 16)
– São Cipriano: “[…] aqueles que são batizados com o mais glorioso e supremo batismo de sangue certamente não são privados do sacramento do batismo.” (Epístola 72, Artigo 22. A Jubaiano, Sobre o Batismo dos Hereges).
“[…] a causa da perdição é perecer por Cristo. A Testemunha que prova os mártires e os coroa é suficiente para testemunhar o seu martírio.” (Epístola 55, Artigo 4. Ao Povo de Tibaris, Exortação ao Martírio).
Em outras palavras, é Cristo, em última análise, quem faz santos e mártires.
E é isso que a Igreja Católica ensina: «Visto que Cristo morreu pela salvação de todos, aqueles que morrem pela fé (Batismo de sangue), os catecúmenos e todos os que, movidos pela graça, sem conhecer Cristo e a Igreja, buscam sinceramente a Deus e se esforçam para fazer a sua vontade (Batismo de desejo), podem ser salvos mesmo sem o Batismo. Quanto às crianças que morrem sem o Batismo, a Igreja, em sua liturgia, as confia à misericórdia de Deus». (Catecismo da Igreja Católica, 1281-1283)
*Agência Fides