A ressurreição de Stalin na Rússia de Putin

A ressurreição de Stalin na Rússia de Putin

Religião

A Novaya Gazeta documenta como, desde a década de 1990 e mais ainda ao longo do quarto de século de Putin, 213 novos monumentos a Stalin foram erguidos, juntamente com centenas de apresentações de vários tipos para homenageá-lo. E essa comemoração, fundamental para o culto à Vitória, hoje permite a Putin reprimir duramente qualquer forma de dissidência.

Pe. Stefano Caprio*

Enquanto o exército russo provoca diretamente os países da OTAN com uma frota de drones sobre a Polônia, deixando o mundo em pânico com a possibilidade de uma escalada nuclear, a Rússia exibe descaradamente seu lado cínico, mesmo quando se trata de negociações de paz e potenciais sanções econômicas adicionais, demonstrando sua confiança em sua capacidade de se afirmar, impulsionada pelo grande desfile militar de Pequim ao lado do “novo Mao” Xi Jinping.

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Seguem-se os Fóruns econômicos de Vladivostok a São Petersburgo, com Putin tranquilizando a todos ao contradizer os profetas da desgraça que falam de recessão, assegurando a todos que “a Rússia tem reservas infinitas de energia e minerais”, suficientes para sobreviver a qualquer crise e a qualquer guerra. De fato, precisamente enquanto drones russos sobrevoavam a fronteira, o presidente recebeu um grupo de jovens cientistas russos que mostraram as descobertas dos novos “frutos da imortalidade”, uvas e morangos que garantem rejuvenescimento e vida longa.

A retórica da drande Vitória é reiterada em formas cada vez mais grotescas e apocalípticas, de 9 de maio em Moscou a 3 de setembro em Pequim, para mostrar ao mundo que a história está “tomando um novo rumo”, que em grande parte refaz os caminhos do passado. Se o líder chinês se apresenta como uma nova versão do Grande Timoneiro, vestindo seu uniforme histórico, o líder russo se reconhece cada vez mais como a reencarnação do Pai dos Povos, o russo-georgiano Joseph Stalin, que governou a URSS por trinta anos, como o próprio Putin está prestes a completar, ainda que sem seu casaco militar, mas confiante em uma Vitória igualmente universal.

Uma pesquisa dos jornalistas Aleksandra Arkhipova e Jurij Lapšin, publicada na Novaja Gazeta, documenta o processo de reestalinização, em andamento desde a década de 1990 e cada vez mais intenso durante o quarto de século de Putin, com 213 novos monumentos ao ditador e centenas de apresentações de diversos tipos, em grande parte iniciadas pelo Partido Comunista (KPRF), mas também por muitas autoridades regionais e instituições patrióticas. O ano mais glorioso nesse sentido foi 2019, com o 140º aniversário do nascimento de Stalin e a inauguração de cerca de vinte novos memoriais, justamente quando crescia a ansiedade para resolver a crise com a Ucrânia, iniciada três anos depois, com uma “operação especial”.

Após anos de ressurgimento espontâneo do culto à personalidade do homem que efetivamente criou a União Soviética, nos últimos tempos a memorialização de Stalin assumiu na Rússia um aspecto mais oficial e institucional, como confirmado em maio deste ano, durante as cerimônias comemorativas da Vitória na Grande Guerra Patriótica, quando um baixo-relevo de Stalin foi inaugurado na estação Taganskaja do metrô de Moscou. A composição mostra o ditador cercado por fieis súditos que lhe oferecem buquês de flores. É uma réplica exata do original que foi instalado no mesmo local em 1966 como símbolo do “neostalinismo” do secretário do PCUS, Leonid Brezhnev, quando Putin tinha 14 anos e era um delinquente de rua, como ele mesmo relata em suas memórias autobiográficas.

A iniciativa foi replicada na República da Buriácia, na Sibéria, onde um novo monumento a Stalin foi erguido em 6 de maio em comemoração à fundação do Komsomol na região da Mongólia e em outros locais da Federação, como em Vologda, com um busto dedicado ao “Generalíssimo”, e em Kurgan, onde o governador local organizou uma “Maratona das Citações de Stalin”. Em julho, o comandante da Frota do Báltico, o general Sergei Lipilin, doou outro busto do Vožd (outro título stalinista, efetivamente “Il Duce”) para a casa dos oficiais em Kaliningrado, o enclave russo na costa polonesa, onde as tensões estão no auge nestes dias.

Em um nível puramente político, nos últimos anos ficou evidente uma mudança de juízo sobre os anos stalinistas, não apenas pela glória da Vitória sobre o nazismo, tema central da retórica bélico-patriótica que acompanha a guerra de “libertação do ucro-nazismo” na Ucrânia e em todo o mundo, mas também por uma apreciação mais ampla do stalinismo em suas relações com os povos e Estados vizinhos. Não se fala mais sobre os crimes e o terror stalinista, justificados por uma avaliação reiterada várias vezes por Putin, segundo a qual o “grande revolucionário” Vladimir Lenin não tinha uma visão clara da nova criação política que emergiu dos eventos de 1917 e dos anos seguintes, e cometeu o erro crucial de “criar a Ucrânia” e as outras repúblicas separadas, enquanto a grandeza da Rússia deveria ter sido imposta a outros povos. Stalin então tentou “corrigir o erro de Lenin” e, por essa razão, foi forçado a sacrificar várias pessoas (dezenas de milhões), aprisionando-as em campos de concentração.

Esta versão corresponde, na verdade, às circunstâncias que viram o líder revolucionário debilitado pelas doenças e mantido refém por Stalin nos últimos anos de sua vida, entre 1922 e 1924, depois de ter esgotado suas forças durante os anos da guerra civil entre 1918 e 1921. Lenin se opunha ao “grande chauvinismo russo” promovido por Stalin, que, entretanto, eliminava todos os seus adversários internos dentro do partido, ocultando os últimos apelos do líder supremo. Não é por acaso que, após uma luta sistemática para assumir o poder total, Stalin se voltou sobretudo para a Ucrânia, que a partir de 1930 foi submetida às medidas mais radicais para implementar a coletivização agrícola dos kolkhoze, a ponto de submeter os agricultores ucranianos livres (e mesmo aqueles do Cáucaso, até mesmo da Ásia Central) à des-kulakização, à perseguição de indivíduos conhecidos como kulaks e considerados traidores da pátria (hoje seriam chamados de “agentes estrangeiros”) e até mesmo à privação de bens essenciais, à “carestia de Estado” chamada Holodomor, uma das medidas mais desumanas de opressão étnica e social, que hoje seria facilmente chamada de “genocídio”.

Como se isso não bastasse — após a tragédia da guerra, a invasão nazista da Operação Barbarossa, que os ucranianos apoiaram não por simpatia ideológica, mas para se libertarem do jugo soviético —, imediatamente após a vitória, Stalin, que havia restaurado o Patriarcado de Moscou para sua própria glória, planejou a reunificação da Igreja Greco-Católica Ucraniana com a Igreja Ortodoxa de Moscou, organizada em 1947 no “Pseudo Ssínodo” de Lvov por seus colaboradores mais próximos, o Patriarca de Moscou Alexei I (Simansky) e o secretário do Partido na Ucrânia, o futuro “reformador” Nikita Khrushchev. Tudo corresponde hoje na Rússia de Putin, desde a centralização do poder pela supressão da oposição, à coletivização e à industrialização “em tempo de guerra”, até o apoio à Igreja russa na Ucrânia, uma das mais fortes motivações ideológicas para o lançamento da “operação especial”.

Hoje, na mídia russa não se fala mais sobre os campos de concentração de Stalin e as vítimas do terror da década de 1930. Antes pelo contrário, são eliminados os monumentos às vítimas dessas perseguições, especialmente aqueles de nacionalidade não russa, como os lituanos, os poloneses, os finlandeses e muitos outros, e são fechados museus e associações dedicadas à memória da repressão política. Os fatos não são negados, mas a opinião pública tende a reconhecer antes os “méritos” da ditadura, com o uso cada vez mais frequente de expressões como “isso não acontecia sob Stalin”, “o camarada Stalin teria fuzilado todos eles”, “precisamos de Stalin novamente”, o que de fato está acontecendo sob Putin. O mundo inteiro temia Stalin, mas “o respeitavam”, assim como aconteceu no Alasca durante o encontro com Donald Trump.

Outra citação memorial afirma que “Stalin fazia tudo pela Pátria, não em seu próprio benefício”, enviando seus próprios filhos para a guerra, e quando morreu, restavam apenas 800 rublos em sua conta bancária, como os líderes comunistas costumam repetir hoje. É claro que o mesmo padrão não pode ser aplicado ao atual presidente, que possui patrimônio incalculável e coloca suas filhas e netas em todas as posições de poder possíveis, mas continua sendo uma imagem fundamental de um grande líder que se sacrifica por seu povo.

A evocação de Stalin hoje permite que Putin aja com dureza na repressão de qualquer forma de dissidência, especialmente porque não é necessário enviar milhões de pessoas para a Sibéria; basta cortar as asas de algumas dezenas de dissidentes e deixar seus líderes morrerem no frio do inverno, como aconteceu com Alexei Navalny. De resto, basta bloquear a internet e obrigar todos a usar o Mensenger patriótico Max, já que todos agora vivem exclusivamente de comunicações virtuais..

Sem a reevocação de Stalin, não teria sido possível recriar o culto à Vitória, única verdadeira dimensão ideológica da Rússia de Putin, visto que não há perspectiva de uma “Rússia do futuro”, por razões econômicas, sociais e políticas. A definição mais adequada é uma frase do próprio Putin: “O futuro será como o passado, e o passado era maravilhoso.”

*Pe. Stefano Caprio é docente de Ciências Eclesiásticas no Pontifício Instituto Oriental, com especialização em Estudos Russos. Entre outros, é autor do livro “Lo Czar di vetro. La Russia di Putin”. (Artigo foi publicado pela Agência AsiaNews)

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