Edmar Monteiro Filho
Hoje, entre os livros que preenchem as prateleiras à minha volta, vivem diversos volumes que pertenceram a meu pai. Alguns poucos estiveram nas estantes de meu avô e outros mais são herança de minha tia. Estou cercado desses suportes de memória, objetos carregados de lembranças, pontes materiais para o imaterial. Talvez isso explique minha resistência quanto à leitura em telas, seja de celulares, computadores ou outros desses leitores eletrônicos.
Embora reconheça sua praticidade, resisto à desmaterialização que sinaliza os novos tempos — da mesma forma como também prefiro os velhos discos de vinil às facilidades infinitas da música digital.
O ato de virar as páginas, o prazer de apreciar o cuidado e a beleza de uma boa edição, talvez despareçam em breve, vinte séculos depois do surgimento dos primeiros códices. Enquanto não chegamos a isso, apego-me ao precioso papel.

Certos avanços da tecnologia acabam incorporados ao nosso modo de vida de tal maneira que se tornam imprescindíveis. Outros, nem tão indispensáveis, criam a ilusão mercadológica da absoluta necessidade, forçando-nos a aderir, sob pena de sermos condenados à indiferença rancorosa de redes e aplicativos.
Por conta da dificuldade para encontrar algumas edições esgotadas, acabei adquirindo um kindle. Confesso ter apreciado o simpático aparelhinho, ainda que como recurso secundário de leitura. E se a primeira impressão é importante nas avaliações, contribuiu demais ter me iniciado no kindle com “71 Contos de Primo Levi” (Companhia das Letras, 567 páginas, tradução de Maurício Santana Dias).
Escritor judeu italiano, Levi ganhou reconhecimento por “É Isro um Homem?” e “A Trégua”, relatos sobre as dolorosas experiências vividas no campo de concentração de Auschwitz e logo após sua libertação.
Entretanto, quem buscar nos contos tão somente as memórias de uma alma devastada pelos horrores que presenciou, irá se surpreender.
Na coletânea estão reunidos três livros do autor: “História Natural”, de 1966, “Vício de Forma”, 1971, e “Lilith”, 1981.

Os dois primeiros trazem uma coleção de intrigantes histórias de ficção científica e fantasia, todas enfocando uma espécie de desumanização dos indivíduos perante uma ciência que propõe substituições dos atributos humanos por máquinas e instrumentos.
Assim, o leitor é apresentado a uma máquina capaz de compor versos, que acaba evoluindo para um modelo com capacidade para reproduzir objetos com absoluta fidelidade, tornando-se por fim, apta a copiar os próprios seres humanos, com todas as suas características pessoais.
Crianças sintéticas são discriminadas pelos colegas de escola; cientistas desenvolvem substâncias capazes de transformar dor em prazer; parasitas e automóveis adquirem características humanas, num estranho jogo mimético; engenheiros encarregados da criação dos primeiros homens, são incapazes de entrar em acordo sobre suas características essenciais; pessoas passam a exibir propagandas implantadas nas próprias testas; uma rede de comunicações ganha vida e passa a se expandir sem controle: essas e outras engenhosas construções ficcionais criam um universo em que a ciência vai se distanciando de seus vínculos com o bem-estar da humanidade.
Nesse sentido, toda a ironia que atravessa cada um desses contos, traduz um pessimismo profundo, traços da descrença do autor com relação ao futuro do homem.
“Lilith”, o derradeiro livro que compõe a coletânea, traz uma extensa variedade de histórias, escritas entre 1975 e 1981 e divididas em três blocos: “Passado Próximo”, “Futuro Anterior” e “Presente indicativo”.
No primeiro, ressurge a literatura de testemunho. O Holocausto é cenário de horrores, mas os personagens que povoam essas páginas surgem revestidos de uma dolorosa grandeza.
Nesse conjunto, destacam-se histórias pungentes, como “O Retorno de Lorenzo”, que mostra o altruísmo brotando no ambiente violento e abjeto de Auschwitz. “Futuro Anterior” mergulha numa fantasia carregada de sombras. Já “Presente Indicativo” é uma mescla de estilos, sem fugir a um certo desconsolo que permeia toda a obra. Como destaque, o comovente “O Vale de Guerrino”.
Nesses “71 Contos”, a imaginação de um grande escritor se expande em múltiplas direções a partir de um núcleo central: os riscos à dignidade do homem. A ciência, a violência, o caos e o absurdo ameaçam esmagar o produto mais perfeito da criação.
Sob esse extraordinário conjunto de histórias, o profundo desamparo desse sobrevivente de Auschwitz vai deixando sua marca.
Em 1987, seis anos após a publicação de “Lilith” e incapaz de fazer de sua criação, tão rica em beleza e lucidez, um bálsamo para suas feridas, Primo Levi tirou a própria vida.
Edmar Monteiro Filho, escritor e crítico literário, é colaborador do Jornal Opção.
[Email: edmont@uol.com.br]
Leia mais sobre a depressão e o suicídio de Primo Levi
O post Ironia dos contos de Primo Levi exibe traços de sua descrença com relação ao futuro do homem apareceu primeiro em Jornal Opção.