Na luta para preservar um dos maiores símbolos naturais e culturais de Cavalcante, o ecologista Heldney Costa Coelho ergue a voz contra o que chama de tentativa absurda de privatizar o Parque Municipal do Lava Pés. Em entrevista ao Jornal Opção, Heldney, nascido e criado no município, detalhou a história da área e criticou a recente movimentação política que pode entregar o espaço, atualmente protegido por lei, a Evangelino Moreira dos Santos, com vistas a uma possível venda futura ao grupo Majulê, conhecido por empreendimentos de luxo na região da Chapada dos Veadeiros.
Segundo Heldney, a área que hoje forma o Parque sempre foi uma extensão de uso público comunitário. Remontando à década de 1960, ele relembra que o terreno foi originalmente doado pelo Estado ao município para ser um espaço de servidão pública. “Naquela época, Cavalcante tinha três ruas e começava justamente na margem do Lava Pé”, explica. Ele recorda que o local servia como pasto de descanso para animais de viajantes, ciganos e moradores da zona rural, que traziam seus cavalos e burros para pernoitar durante suas passagens pela cidade.
A conexão emocional da comunidade com o Lava Pés vai além da função de pasto. Heldney descreve com detalhes a importância do rio para gerações inteiras. “Eu costumo dizer, assim, em uma linguagem mais poética, que o rio amamentou com seu leite cristalino gerações de Cavalcante”, afirma. Foi naquele córrego que moradores como sua mãe enchiam potes de água, que lavadeiras da Rua da Palha batiam roupa e que os meninos da cidade, como ele próprio, brincavam e tomavam banho em diferentes pontos: o Poção, reservado aos homens, e o Poço das Mulheres, frequentado pelas moradoras.
A indignação de Heldney ganhou força quando, em 1994, durante o mandato do então prefeito José Leite, ele soube que a área estava prestes a ser vendida ao dono de uma mineradora, Eduardo Coimbra Passos. “Dona Darcy, lavadeira da Rua da Palha, me chamou e disse: ‘Dinei, vamos ficar sem o nosso rio’”, lembra.
Sem apoio jurídico ou político, o jovem Heldney liderou a primeira grande manifestação ambiental da cidade, convocando lavadeiras com bacias na cabeça e jovens de tanga e biquíni para simbolizar os banhistas. “Fui de casa em casa, convoquei lavadeiras, estudantes, crianças, todo mundo. Naquela época, a gente não tinha nem advogado, foi na base da coragem e da fé”, relembra.
O movimento resultou na criação, por força de lei, do Passo de Servidão Público e Comunitário, posteriormente transformado em Parque Municipal por decreto assinado, ironicamente, pelo próprio Eduardo Coimbra Passos, anos depois.
“Depois disso, o próprio prefeito que tentou comprar a área acabou reconhecendo seu valor e criou oficialmente o parque”, destaca Heldney.

O ecologista não esconde a decepção com o atual prefeito, Vilmar Kalunga (PSB), que, segundo ele, fez uma “doação irregular” da área ao morador Evangelino Moreira dos Santos. Heldney vê na ação uma tentativa velada de viabilizar a venda para o grupo Majulê, responsável por um resort na região com diárias que chegam a R$ 3 mil. “Esse megaempresário que está comprando tudo em Cavalcante, a custo de banana, dono de resort, fez uma proposta pela área”, denuncia Heldney.
O caso gerou intensa mobilização. Um abaixo-assinado organizado pela comunidade já reuniu mais de 250 assinaturas exigindo a anulação da doação. O documento denuncia a possibilidade de instalação de uma estrutura de cobrança de ingresso no local, restringindo o acesso da população. “Área pública não é mercadoria”, reforçam os signatários.
“É um absurdo entregar o Parque Municipal para virar empreendimento de luxo. O Lava Pé é do povo de Cavalcante”, protesta.
Segundo Heldney, muitos cavalcantenses temem que a venda da área seja apenas o primeiro passo para a elitização do acesso aos recursos naturais da região. “A cachoeira do Lava Pés sempre foi de todos. Desde crianças, nossos filhos aprendem a nadar ali. Onde que o cidadão cavalcantense, o cidadão simples, vai poder ir num lugar desse?”, questiona.
A reação popular não é por acaso. Heldney relembra que o Parque passou por um extenso processo de criação, com direito a Plano de Manejo, levantamento de fauna, flora e participação comunitária. “Mobilizou a cidade inteira, teve sala de aula dedicada ao estudo do parque, antropólogos, geólogos, engenheiros de fauna e flora catalogando cada detalhe”, destaca.
Para ele, a tentativa de desmembrar o parque ignora não só a história local, mas também documentos oficiais. O próprio prefeito, segundo Heldney, participou da elaboração do plano de manejo enquanto estudante. “O nome dele está lá, na lista de participantes. Ele sabe exatamente a importância dessa área.”
Heldney também aponta para um suposto jogo político por trás da doação. Segundo ele, os valores envolvidos – estimados em mais de R$ 2 milhões – levantam suspeitas sobre o real objetivo da transação. “Todo mundo sabe que o Evangelino não vai ficar com esse dinheiro. A gente sabe como essas coisas funcionam em época de campanha”, afirma.
As suspeitas sobre a real destinação da área se agravaram após a divulgação de imagens que mostram a construção recente de uma pequena estrutura de alvenaria no local. Segundo Heldney, Evangelino, que passou anos trabalhando em empresas de energia em Alto Paraíso, teria voltado a Cavalcante recentemente e, aproveitando-se da ausência de uso do terreno por seu sogro, o Sr. Divino, ergueu às pressas uma pequena construção no local.
“Ele construiu um barraquinho lá que só tem porta, mostramos isso nos processos do grupo que defendem a área. Nós tiramos as fotos, tem lá, é um barraquinho de dois por três metros, só tem porta, não tem nem janela, dá pra se ver que foi feito agora”, relata Heldney, que completa: “Está claro que isso foi feito às pressas para justificar a doação”, denuncia.
Veja vídeo do local:
Além da construção improvisada, Heldney denuncia que Evangelino, utilizando antigos contatos no setor elétrico, conseguiu instalar energia na estrutura, apesar de um detalhe que chamou atenção da comunidade: a conta de luz permanece zerada. Para o ecologista, isso reforça o argumento de que a ocupação da área não tem caráter legítimo ou histórico. “Prova que ninguém nunca morou ali”, critica.
Os documentos que sustentam a ilegalidade da doação já foram levados ao Ministério Público de Goiás (MPGO). Heldney afirma que o processo de registro da escritura foi paralisado após pressão popular e denúncias junto aos cartórios locais. “Nós oficializamos no cartório, falando da ilegalidade, que eles poderiam responder por esse crime, porque isso é ilegal”, detalhou.
A defesa do Lava Pés, segundo Heldney, é antes de tudo uma luta pela preservação da identidade e dos direitos da população local. “O problema é na venda, se o seu Evangelino ficasse ali, apesar de ele não ter animal nenhum, ele nunca criou animal nenhum, quem criava era o sogro dele que tinha esse legado, o senhor Divino. Mas se ele assumisse o lugar do sogro dele, nós cidadãos não iríamos nos sentir ameaçados. O problema é ele querer vender”, concluiu.
Procurado pelo Jornal Opção a respeito das especulações que envolvem o suposto interesse na compra de parte do Parque Municipal Lava Pés, o Grupo Majulê enviou uma nota com seu posicionamento.
“A Cachoeira Lava Pés é um patrimônio público de Cavalcante, e o Majulê não possui qualquer relação com sua administração ou uso. Reiteramos nosso total respeito à importância cultural, histórica e afetiva que esse local representa para a comunidade, e reafirmamos que não há – e nunca haverá – qualquer interesse do Majulê em limitar ou interferir no acesso da população”, diz o comunicado.
A empresa acrescentou que todas as suas atividades são realizadas apenas em áreas privadas, com registros legais e seguindo as autorizações e licenças exigidas pelos órgãos competentes.
O Ministério Público de Goiás instaurou uma investigação para apurar as denúncias. A comunidade, por sua vez, segue mobilizada. Heldney promete continuar lutando. “O Lava Pé é nossa identidade, nossa história, nosso sustento emocional. Não vamos aceitar que seja vendido como se fosse um terreno qualquer. Essa área pertence ao povo de Cavalcante e ao mundo inteiro, porque a natureza é patrimônio de todo ser humano e de todos os seres vivos.”
Leia nota completa do Grupo Majulê:
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O post “Área pública não é mercadoria”: morador de Cavalcante denuncia esquema de venda do Parque Lava Pés para grupo empresarial apareceu primeiro em Jornal Opção.