José Reinaldo F. Martins Filho*
Ilustríssima senhora Promotora de Justiça, cujo nome desconheço e assim prefiro que permaneça,
Saudações de fraternidade, com votos de encontrá-la em paz de espírito.
O motivo desta breve epístola é reagir à manifestação contrária exarada por vossa senhoria ao pedido de afastamento formalizado por uma de minhas orientandas no curso de doutorado em Ciências da Religião em que atuo.
Ana, Beatriz ou Clara – e qualquer um desses nomes poderia ser o seu, para nos valermos da lógica arbitrária da ordem alfabética –, sua subordinada imediata, remeteu nos últimos dias uma solicitação à vossa senhoria com o intuito de modificar a modalidade ordinária de seu exercício profissional do regime presencial para o remoto. Levando em conta o conjunto de suas atividades e a natureza de seu trabalho, tal mudança não acarretaria quaisquer perdas ou prejuízos. Seu argumento tinha como núcleo a conquista de uma bolsa para a realização de uma experiência de internacionalização junto a uma reconhecida universidade no exterior, pelo período de apenas três meses.
Embora pessoalmente tivesse cogitado conceder a permissão necessária, a resposta emanada por vossa senhoria no processo administrativo foi de teor negativo. Uma negativa que, por si só, não me causaria espanto algum, senão por seu significado geral: o pedido foi negado porque o curso de Ciências da Religião supostamente não disporia de suficiente “utilidade pública”.
É precisamente junto ao argumento em epígrafe que aqui quero deter-me, divergindo, respeitosamente. É fato sabido o desprezo nutrido por parte significativa da sociedade brasileira, sobretudo pelos representantes de sua burguesia menos esclarecida, para com a grande área das Humanidades. Mas, o que é o útil? E, consequentemente, quanto pode ser útil para o espaço da vida pública?
Desde há muito tenho insistido na necessidade de superarmos a lógica utilitarista que domina o nosso país. Isso porque somente há utilidade no que pode deixar de sê-lo, tornando-se inútil. E, por isso, o caráter absolutamente efêmero de sustentações do tipo utilizado por vossa senhoria. Falta-nos, segundo o que me parece, alcançar o que importa: na nossa vida, justamente o que não dispõe de utilidade tem maior valor. Nossas relações, o amor de uma mãe para com seu filho, ou o inverso. A maior parte do que somos foge a essa lógica de aniquilação. Do contrário, nada mais seríamos que agentes mesquinhos em pleno movimento de nossos jogos de poder.
Mas a questão da “utilidade pública” é ainda mais preocupante. Primeiro porque pode parecer bastante presunçoso sugerir a inutilidade pública de uma área de conhecimento consolidada, pautando-se tão somente no princípio da ignorância. Revelar-se ignorante sobre um assunto deveria ter como consequência a omissão do juízo. Não o contrário, como visto no exemplo de vossa senhoria. Mas, em segundo lugar, porque o próprio ato de conhecer é profundamente relacionado com a constituição da esfera pública da vida, esse espaço de realização plena que nos determina como seres humanos, abertos ao discurso e à ação.
Ao tomar como suposta a inutilidade de uma área do conhecimento, seja ela qual for, corre-se o risco de se subverter um princípio fundamental, para o qual neste argumento recupero o raciocínio do filósofo estagirita, Aristóteles, em pleno frescor de seus vinte e cinco anos de uso. Ora, segundo sua avaliação, na hierarquia dos saberes, isto é, da sapientia, devemos partir do que há de mais efetivo e prático ao mais original e, por isso, relativo ao fundamento. Um caminho de gradativo amadurecimento.
Como avaliar a utilidade pública do direito, senão em estreito vínculo com o senso de justiça, com o princípio ético da razoabilidade, com o contexto vivencial das relações que constroem o mundo? Não basta dar utilidade a um dispositivo legal. É preciso constantemente reavaliar a sua pertinência, a sua manutenção ou exclusão no avanço dos ciclos humanos. E, para isso, há que se conhecer as causas, não somente os efeitos.
Trata-se de um princípio muito bem recepcionado por várias doutrinas jurídicas, entre as quais quero aqui recordar o brilhante Miguel Reale, em sua equação tridimensional: não há norma que se esquive dos fatos, e não há fatos sem que haja valores. Os valores, pontos de partida para a leitura dos fatos, são produtos da cultura. Possuem camadas a serem desvendadas; camadas que, embora nem sempre evidentes, determinam a realidade como ela é – ou, melhor, como ela parece ser. Para dizer de outro modo, é como se assim formulássemos: manipular o construto já consolidado pela área do direito requer apenas adestramento. Pensar o direito, não! Pensar o direito demanda um processo de maturação, insistência e recusa do imediato e óbvio para o qual há que se ter talento e desenvolvê-lo. Daí que o que se mostra menos útil na verdade mais o é. E isso deve ser considerado fundamental para uma sociedade que não pretenda restar de joelhos ante a imposições hermenêuticas de caráter restritivo e totalitário.
Infelizmente, no serviço público brasileiro (e não se trata de uma exclusividade do meio jurídico) parece não haver muito espaço para a reflexão atualmente, para o cultivo de um pensamento profundo. Permanece-se na superfície, no verniz da realidade, tomada desde os dígitos refrigerados dos processos; mantém-se toda a estrutura e seus agentes no automatismo dos atos. Em espaços assim, o espírito criativo – aquele que marcará o mundo que há de vir – não pode prosperar. Sentir-se-á sufocado.
Eis porque é premente avaliarmos as nossas escolhas, a direção para a qual nos encaminhamos como sociedade, sem medo do que parece inútil ao primeiro olhar. Os agentes públicos devem tomar a fileira da frente, não somente endossar o fluxo da turba.
Em síntese, desejo que vossa senhoria receba este contato com mãos ternas, em preito de gratidão e estima: vale muito o exercício de abrir os olhos para vermos o quão longe ainda estamos da sonhada emancipação cognitiva de nossas instituições. Acredito muito no potencial de vossa senhoria, que saberá, oportunamente e para sempre, que todo conhecimento é útil, que todas as áreas do saber são necessárias. E, quanto mais criativas, melhor!
Mui cordialement,
José Reinaldo F. Martins Filho
Doutor em Ciências da Religião e em Filosofia. Docente permanente do PPG em Ciências da Religião da PUC Goiás.