Halley Margon
Armas de destruição em massa ou programa nuclear, a variação é semântica ou nem existe. As armas de destruição em massa do Iraque, o programa nuclear iraniano, e vice-versa. Mas nunca o de Israel, que não é signatário de nada que tolha sua determinação de agir onde e como quiser – o crédito obtido com o holocausto, além de infinito, parece poder comprar o que quer que seja útil aos planos dos seus generais. “‘Os líderes israelenses viam o projeto nuclear como um compromisso para assegurar o futuro do país — uma promessa de nunca mais, forjada pela lembrança do Holocausto’, escreveram em fevereiro, na revista Foreign Policy, dois especialistas no programa nuclear israelense, Avner Cohen e William Burr”. (Folha de São Paulo, 20 de junho). Embora não negue, nem confirme, estima-se que Israel possua cerca de 90 ogivas nucleares. A informação, também publicada pela Folha, é da Campanha Internacional para a Abolição de Armas Nucleares (Ican, na sigla em inglês), “coalizão global com sede na Suíça, que foi agraciada com o Prêmio Nobel da Paz em 2017”.
Basta que a expressão seja mencionada. E de novo e de novo. A cada vez num novo contexto ou num novo formato. Não importa que haja discrepância entre esses contextos ou que estejam tão distantes um do outro quanto duas estrelas nas extremidades opostas de uma galáxia. Interessa é que ela seja repetida, e repetida até a exaustão. É a repetição, mais que a própria expressão, o que lhe garante eficácia, é a repetição que leva ao objetivo desejado. Porque desde lá do alto uma mão invisível apertou o botão que dá início ao funcionamento da maquinária. Ela, a maquinária, deve estar sempre de prontidão – como os exércitos. Já aconteceu antes, não muito tempo atrás. Exatamente da mesma maneira que agora. E lá estavam os serviçais prontos para propagá-la, como uma senha, como um vírus.
Uma ou duas semanas, como disse Trump a título de despiste, é tempo mais que suficiente para que se inicie a segunda parte da operação: o ataque final contra o outro, declarado inimigo. Três dias depois ordenou que os aviões B-2 bombardeassem as instalações nucleares iranianas. Sem, no entanto, nenhuma declaração de guerra – ato formal e oficial, “geralmente um discurso ou um documento, pelo qual um país anuncia que está em estado de guerra contra outro(s) país(s)” e, que evidentemente, produz consequências legais reconhecidas por todos. Da mesmíssima forma como o fez Netanyahu ao lançar, sem aviso prévio, mísseis contra o território iraniano. Se antes havia algum constrangimento no atropelo das leis internacionais que regem as relações entre os países, agora já não há. Nem mesmo uma declaração de guerra. A cada dia torna-se mais evidente e inquestionável que Israel e os Estados Unidos (e vice-versa) fazem o que bem entendem, quando bem entendem, contra quem quiserem, menos, é claro, contra aqueles que dispõem do mesmo poder de fogo que eles próprios – tanto do ponto de vista militar, quanto midiático. No linguajar da rua, só batem nos mais fracos. Utilizam-se mais ou menos displicentemente de uns tantos manuais de propaganda, às vezes nem se dando ao trabalho de fazer isso, e já está. É quando lançam suas palavras de ordem ou, mais precisamente, seus slogans publicitários. Apenas para amenizar o crime e, mais, fazer com que o ato criminoso se transforme em gesto heroico absolutamente necessário.
Assim que, após uma primeira onda de ataque, no domingo, 22 de junho, o vice-presidente americano declara: “a guerra é contra o programa nuclear iraniano”. Não contra o Irã ou nem mesmo contra a ditadura eclesiástica dos aiatolás. Soa mais neutro ou como um ato do bem contra o mal tendo como alvo o bem-estar de todos. E se assim foi dito, assim é e assim será. Imediatamente, as cadeias de transmissão montadas pelas redes noticiosas e de rádio e TV, além dos grandes jornais, repetem em forma de manchete espetacular e, portanto, de verdade absoluta, a sentença emanada da Casa Branca.
O Império e seus interesses estão acima, não apenas de qualquer consideração ética, mas também da legalidade pactuada entre as nações. (Israel é um dos poucos países que não assinaram o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, acordo internacional que entrou em vigor em 1970 e tem adesão de 190 países.) A par e passo, lá estão os poderosos meios de comunicação para confirmar que o necessário (ao Império ou ao Imperador de plantão e seus súditos preferenciais) é também e automaticamente, o legal. Criado o slogan, cada um dos braços da vasta máquina publicitária entra em operação. Em março de 2003, o Iraque foi invadido. São apenas duas décadas. Os mecanismos usados então são exatamente os mesmos que foram colocados em operação agora. Quem poderia imaginar que a história se repetiria em termos quase que absolutamente idênticos, apenas duas décadas depois, para que o mundo próspero pudesse se impor e impor seu modelo civilizatório – e seus interesses materiais – a quem quer que, deus ou diabo, se coloque fora de ordem?
A César o que é de César, e a Deus o que é de Deus
A expressão do evangelho (Mateus 22:21) caiu na boca do povo e na infinita criatividade das línguas foi adquirindo novos sentidos. Serve, por exemplo, para separar os âmbitos do poder terreno do poder celestial ou religioso, ou para também separar a Igreja do Estado. Mais coloquialmente, designa o reconhecimento daquilo que pertence a cada um. Para reconhecer, por exemplo, mesmo naqueles por quem não somos exatamente apaixonados, a existência de algum mérito. É o caso de Trump (the King, segundo as ruas, o showman nas palavras do Líder Supremo e aiatolá Ali Khamenei, ou ainda César, se quiserem, com a devida vênia àquele que cruzou o Rubicão, criou o calendário que até hoje é usado por nós e foi assassinado por uma coligação entre pares). Nem tudo é desastre e maldade em sua recém-iniciada gestão. Quem, antes dele, escancarou as portas da Casa Branca e de cara para a audiência planetária deu esporros em subordinados, como fez com o presidente ucraniano Vladimir Zelensky? Até o todo-poderoso Netanyahu é obrigado a ouvir calado esculachos públicos antes proferidos apenas em recintos muito protegidos – até porque, no que importa, havia conseguido que o Império fizesse o que ele próprio queria que fosse feito.
Há, portanto, um inédito nível de transparência onde as verdadeiras relações de força são explicitadas e que jamais é visto na política em geral e na política internacional em particular, onde imperam as regras da cortesia e do linguajar calculado da diplomacia profissional (inclusive para proferir impropérios). A simples e inegavelmente boa transparência. Não há como não reconhecer que num século tão entrevado isso seja um tremendo mérito. A arrogância que Donald Trump traz do berço, somada à adquirida, sobretudo nos últimos anos e multiplicada n vezes a partir da última eleição, permite que se comporte de acordo com a etiqueta e a diplomacia próprias dos monarcas absolutos – e dos imperadores. E, ao menos quando lhe interessa, atue com transparência.
As vítimas
Quanto aos outros, as vítimas desses senhores da guerra e da referida pax, pode não ser muito, mas caso queiram pelo menos lhes resta a indignação (como sugeriu uma amiga querida, ligeiramente otimista).
Halley Margon, escritor e ensaísta, é colaborador do Jornal Opção.