Navegar horas a fio pelas redes sociais deixou de ser exceção para se tornar uma rotina silenciosamente prejudicial à saúde mental. Termos como “brain rot” (cérebro apodrecido), foram catapultados ao centro do debate público, sendo inclusive eleito o termo do ano de 2024 pela Oxford University Press. Mas o que está por trás dessa expressão que tem se popularizado entre jovens e se espalhado pelas redes?
Em entrevista ao Jornal Opção, o psicólogo Raphael Cardoso, doutor em psicologia experimental e especialista em Mídia e Desenvolvimento Infantil, alertou sobre os efeitos nocivos do uso excessivo de telas, especialmente entre crianças e adolescentes. Segundo ele, “o debate sobre uso de telas não é só uma questão do tempo, mas também do conteúdo que a pessoa consome”, o que exige uma abordagem multifatorial e um olhar atento sobre a realidade social e psicológica de diferentes faixas etárias.
Ao investigar há mais de uma década os impactos do uso da tecnologia em crianças, Raphael começou seus estudos pouco tempo após o lançamento do iPhone e do iPad. Desde então, o campo se expandiu, passando a considerar também os efeitos sobre jovens, adultos e idosos. Ele enfatiza que, para compreender os chamados “efeitos de mídia”, é necessário integrar conhecimentos da psicologia, da teoria da comunicação e da antropologia. “É um ambiente, vamos dizer, hostil para relações saudáveis, mas isso não significa que os conteúdos não possam ser utilizados de maneira benéfica”, pondera.
À primeira vista, o termo “brain rot” pode parecer exagerado ou meramente irônico. Contudo, Raphael observa que, embora o termo não tenha base científica, ele reflete uma percepção real de esgotamento. “De fato, existem pesquisas demonstrando uma sobrecarga de processamento de informação o que causa uma fadiga, que a gente vai chamar de uma fadiga mental. E isso pode dar a ideia de que nosso cérebro está podre.”
Essa superestimulação por meio de sons, imagens e conteúdos constantes pode ter efeitos concretos, sobretudo em cérebros em formação. Segundo o especialista, estudos em modelos animais indicam prejuízos em funções como memória e atenção. “A maior preocupação novamente são as crianças ali na primeira infância, porque esse cérebro ainda está em desenvolvimento”, destaca. Há evidências, inclusive, de alterações em estruturas cerebrais como o núcleo accumbens, região associada às emoções e à recompensa.

Não é apenas a quantidade de tempo que se passa diante das telas que preocupa os pesquisadores, mas principalmente a qualidade do conteúdo consumido. Para Raphael, diferentes faixas etárias enfrentam riscos distintos: “Das crianças nós estamos falando de tempo de tela. Já os adolescentes, nós estamos falando sobre conteúdos e interações que se estabelecem no mundo virtual. Já os adultos é isso da radicalização do uso e das influências. E os idosos é a desinformação e golpes.”
Apesar da popularização da crítica ao tempo de tela, Raphael destaca que não se pode simplificar o problema. “Atribuir todos esses sintomas, todos esses prejuízos ao uso de tela simplesmente não é aquilo que os dados demonstram”, afirma. Ele explica que os efeitos existem, mas são pequenos e interagem com outros fatores, como o contexto social e emocional do indivíduo. Adolescentes que enfrentam exclusão social offline, por exemplo, tendem a vivenciar experiências digitais igualmente negativas.
O pesquisador enfatiza que os efeitos do uso problemático das telas não são uniformes. “A gente não consegue homogeneizar isso, colocar que todas as pessoas vão apresentar da mesma maneira. Acho que o caminho mais interessante seria observar quais são os grupos vulneráveis”, afirma. Segundo ele, mulheres, por exemplo, estão mais expostas a danos nas redes sociais do que os homens.
Em uma amostra de 100 universitárias, 85 relataram já terem recebido conteúdo íntimo não solicitado. Raphael chama a atenção para a diversidade de experiências digitais entre os grupos: “A experiência digital é diferente para diferentes populações. Mulheres, a comunidade LGBTQIA+, pessoas pretas, são infelizmente as mais afetadas por essas experiências ruins.”
Entre os efeitos mais observados em crianças, estão a perda de qualidade do sono e a dificuldade de concentração. O uso de telas à noite é especialmente prejudicial. “Eu falo aos meus estudantes que um dos pontos que nós devemos sempre observar, que é um bom sinal de alerta sobre o uso excessivo de telas, é o sono.”
Entretanto, o psicólogo afirma que o uso de telas pode ser positivo, desde que haja acompanhamento e qualidade nos conteúdos. “O uso compartilhado de telas, por exemplo, os pais acompanhando a interação da criança, seja em conteúdo de vídeo ou em jogos, isso tem uma experiência positiva para a aprendizagem dessa criança.” O problema, segundo ele, surge com o uso solitário, desacompanhado e voltado a conteúdos de baixa qualidade, uma realidade ainda predominante, inclusive entre produtos tidos como educacionais.
A lógica de mercado colabora para esse cenário. “O custo de você criar um material de qualidade é no mínimo cinco vezes maior do que um produto com conteúdo pobre”, explica Raphael. Por isso, as empresas preferem apostar em quantidade e viralização, em vez de investir em conteúdo bem planejado. A desinformação dos pais também agrava a situação. “É muito comum ouvir crianças que estão assistindo séries junto com os pais, que não é apropriado para a idade delas ou vendo vídeos que, na verdade, são propagandas disfarçadas.”
Na visão do psicólogo, crianças com menos de dois anos não devem ter contato com telas. Ele defende uma posição respaldada por entidades científicas e pela legislação brasileira, como o Marco Legal da Primeira Infância. “O uso de telas, por exemplo, de um celular para videochamadas com a família é uma coisa positiva. […] Agora, crianças muito pequenas, isso não é recomendado em nenhuma entidade profissional.”
Além da atuação familiar, Raphael defende que a escola também tem papel fundamental na construção de uma relação mais saudável com a tecnologia. “Eu considero que sempre a escola tem uma missão de educar e trazer competência e autonomia para crianças e jovens. Acho que a escola deve trabalhar nessa educação midiática.” No entanto, ele lembra que durante a pandemia, muitas instituições estimularam o uso precoce e desregulado de plataformas digitais. “Nós temos denúncias de empresas das big techs coletando informações de estudantes com idade menor de 13 anos que tiveram que fazer contas online estimuladas pelas escolas.”
Outro aspecto que preocupa são os casos de assédio e radicalização online. Raphael alerta que jovens e crianças têm sido alvos de práticas abusivas, inclusive em plataformas como o Discord. “Estamos falando de crianças que estão sendo capturadas por grupos, às vezes especializados ou não, para determinadas práticas.”
Ele defende que a melhor maneira de mitigar os riscos do ambiente digital é manter diálogo aberto com crianças e adolescentes, além de oferecer suporte emocional contínuo. “A melhor maneira, talvez, de evitar isso, é justamente acompanhar essas crianças e jovens em sua jornada digital. Ter abertura com eles para conversar sobre esses assuntos.”
Raphael também destaca que a análise do tempo de tela não deve ser feita isoladamente. As recomendações da Sociedade Canadense de Fisiologia do Exercício (CSEP), segundo ele, são as mais completas. “Você deve observar o tempo de sono, prática de exercício, inclusive identificando qual tipo de exercício… Caso você tenha observado que ela passa mais tempo sedentária dentro de casa, isso já é um sinal de alerta.”
Diante desse panorama, o psicólogo propõe que a discussão sobre o uso de telas vá além dos clichês entre o “certo e o errado”. Raphael sugere algumas medidas estruturais, começando pela regulamentação das redes sociais. Ele alerta que essas plataformas operam hoje sem qualquer responsabilização efetiva, mesmo diante de fortes evidências de danos, inclusive com relatos vindos de dentro das próprias empresas.
“Nós temos o caso do testemunho da diretora de produtos da Meta, relatando de forma espontânea no Congresso americano sobre aquilo que ela vivenciou nessa empresa. Então, só lembrando que a Meta é a dona do Instagram. Acho que a regulamentação das redes é importantíssima”, pontua.
Outro ponto, segundo ele, é a educação midiática. Esse tipo de conhecimento, que ensina crianças, adolescentes e adultos a compreenderem como funcionam as mídias digitais, deveria ser abordado transversalmente nas escolas. Raphael também destaca o papel dos pais nesse processo: “Os pais não são de uma geração digital, eles vieram dessa transição, mas é importante pensar no mundo digital como a televisão dos anos 80, não faz muito sentido. Nem o computador dos anos 90.” Para ele, é essencial oferecer conteúdos mais elaborados e, mais do que isso, criar uma rotina que favoreça interações sociais diretas, com acompanhamento ativo da vida digital dos filhos.
Ele ressalta ainda que não se pode contar apenas com a conscientização ou com a boa vontade das grandes empresas de tecnologia. “Acho pouco provável que essa estratégia dê resultado”, diz. Para ele, vivemos um momento extremamente complexo do ponto de vista tecnológico, em que o ritmo da produção científica não acompanha a velocidade do surgimento de novas ferramentas.
“Já temos debates sobre inteligência artificial, como as crianças estão enxergando essa ferramenta… E aí temos um problema: o nosso conhecimento científico sobre o tema se constrói de forma muito mais lenta do que o lançamento de novas tecnologias”, conclui Raphael, reforçando a necessidade de políticas públicas voltadas à proteção da saúde mental infantojuvenil no ambiente digital.
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