Entre o Cerrado e o Mar: fragmentos da obra poética de Luiz de Aquino

Atualidades

Simone Athayde

Especial para o Jornal Opção

Ano Luiz de Aquino da Academia Goiana de Letras (AGL) — Texto 1 de uma série que o Jornal Opção irá publicar

A Academia Goiana de Letras homenageia, neste ano de 2025, o escritor Luiz de Aquino. O autor é dono de uma profícua obra literária, da qual o livro “Poesia completa” (Kelps, 2014), com mais de 500 poemas, é prova de sua consistente produção. Sendo assim, pareceu-me oportuno aproveitar o momento para ler e apreciar alguns de seus escritos.

“Passagens” foi o escolhido para esta apreciação literária por estar situado no meio caminho entre o início da carreira literária de Luiz de Aquino e suas obras poéticas mais recentes.

Os poemas de “Passagens” trabalham com mestria reminiscências autobiográficas nas quais temos a forte presença dos elementos da natureza, do Cerrado ao mar. “Rondó de menino pobre”, p.189, abre o livro e traz vivas lembranças da infância do eu-lírico, num tempo em que a infância era pobre sim, mas também feliz e livre. O gênero rondó caracteriza-se pela musicalidade e pela utilização de um refrão:

“Era caldo de manga madura

correndo amarelo no peito pelado.

Era bola de meia no meio da rua

ou a tarde de sol na beira do córrego

— era assim que eu era criança.

Eram tardes inteiras fechado em casa,

a cara no meio da meia-janela,

vendo passar devagar pela tarde

boiadas inteiras de bois curraleiros

— era assim que eu era criança.”

Depois da descrição poética daquele tempo, na parte final vem o choque de realidade, com tons melancólicos: o menino cresceu e não há mais como retornar ao que foi:

“Não mais o cascalho das ruas, não mais.

Não mais a lama das chuvas,

futebol no meio da rua, coalhada antes de dormir.

Não mais brincadeira de pique, estilingue,

finca ou carrinho; não mais banhos de córrego

nem medo de chinelo velho – chantagem feito ameaça

dos pés para as mãos de mamãe.

Hoje, a barba grisalha e os filhos não mais crianças,

dói fundo no fundo do peito

a saudade do menino magricela

— era assim que eu era criança.”

Aos leitores cabe reviver essas memórias junto com o eu-lírico e encher-se de saudades de sua própria infância perdida ou, se mais jovens, tentarem construir um quadro mental de algo tão distante da atual realidade.

O poema “Tempo e distância” – que foi apresentado em Portugal, no evento Eispoesia – assim como o anterior, é uma espécie de autobiografia poética, com o diferencial de que ele atravessa a infância do menino e se desdobra pela vida afora do eu-poético, até seu amadurecimento. O fio que liga as etapas dessa vida é a poesia. Ela irá acompanhar a meninice através das músicas do pai nas serestas da pequena cidade natal; passará pela adolescência, representada metaforicamente pela voz do trem de ferro que o leva para a cidade grande e que diz “Falta o verso/ falta o verso/ falta o verso”; será parte da existência do eu-lírico adulto que fez-se “vate por amor e índole”; e se firmará no poeta maduro, cujos versos “andarilhos, correram mundos, molharam-se de mares. Criaram asas, ganharam ares, voaram o vento”. Finalmente mostrarão a vontade maior do poeta: ver seus versos se transformarem em “história no tempo que me suplante,/ conduzindo a poesia no transpor milênio!” Como se vê, nesse poema, continuam as lembranças, as vivas imagens e a melancolia pelo que se foi, como nos mostram os versos da 5ª estrofe:

“Eram tais os anos da infância:

Escola, igreja, rua,

Cascalho, a terra nua,

Frutas no pé, o córrego manso,

Folguedos, traquinagens,

Afago de mãe, brabeza de pai.

— Lembrar traz saudades, ai!”

Já o poema “Achamento da terra fértil em mar de calmaria” p. 194, apresenta um tema e um estilo bem diferente dos primeiros. Nele temos um eu-lírico que é um navegador-cronista português na era dos Descobrimentos. Através do seu olhar podemos relembrar as aulas de história que nos falavam dos nomes antigos do Brasil: Terra de Vera Cruz e de Santa Cruz. Há também referências aos nativos que aqui habitavam, à primeira missa, às conversões forçadas, à busca por especiarias e outras riquezas, com críticas aos abusos cometidos pelos colonizadores infiltradas nos versos do eu-póetico de forma quase casual:

“a terra, “em se plantando,

tudo dá”, e nelas, nas índias,

também há de se plantar.”

Esse eu-poético está ligado à Portugal pela amada Maria, que o espera, na vida submissa da mulher daquela época que não pode esperar fidelidade do amado, já que há outras marias em outros portos.

Em “Rio quente e eu” p. 195, temos a presença marcante da natureza, que é protagonista na obra poética de Luiz de Aquino. Nesse poema o autor faz um quadro da cidade de Caldas nos seus anos iniciais, quando era apenas uma pequena cidade “pouco mais que vila” onde brotava água quente e no qual havia o “Córrego de Caldas, miúdo e hospitaleiro/para o banho, farto de lambaris/de ingênuas pescarias”. O eu-poético compara esses pequenos cursos d’água com o rio Corumbá, “violento e forte”. Ao final, faz uma linda reflexão: “Saudade de ser córrego:/ hospitaleiro e manso.” Tal assertiva demonstra nostalgia pelo fim de uma época e faz o papel de uma metonímia, na qual o córrego simbolizaria não só o elemento da natureza, mas todo esse tempo passado, mais simples, mais humilde e, por consequência, mais feliz.

José J. Veiga, prosador, e Luiz Aquino, poeta, prosador e crítico | Divulgação

No poema “Três sinais de devoção a Vila Boa de Goiás” temos uma espécie de descrição poética da cidade de Goiás dividida em três partes. Na parte I “Fetiche”, o eu -poético é um viajante que busca o repouso na cidade pequena cheia de simbolismos:

“Vim veloz, sobre rodas roçando asfalto.

Trouxe os pés de beijar as pedras das ruas e

Os ouvidos de encantar-me a alma ao rumor do Rio Vermelho.”

Já na parte II “O sol”, temos a presença do Sol como elemento poético, objeto recorrente na poética de Aquino. O sol, nesse poema, é o sol de agosto, que “alegra o tempo de contar histórias/ e de se ouvir conceitos pela luz das letras.” Ainda nessa parte aparecem elementos característicos de cidades interioranas goianas: “os fuxicos, o verde das plantas e as cores do ipê”.

Na parte III “Cruz do Anhanguera”, o elemento poético descrito é a “cruz mortiça de madeira velha, símbolo da cidade de Goiás”. Percebe-se que o olhar do eu-poético é um olhar fotográfico, pois ao descrever as paisagens goianas em fragmentos cheios de beleza, acaba por criar realmente imagens a serem completadas pelo olhar do leitor.

O mesmo processo fotográfico se estabelece no poema “Minas: mulher, terra e ar”, também dividido em partes, mas dessa vez em quatro. A originalidade do poema está em propor ao leitor uma viagem até o estado de Minas Gerais, que começa nas alturas de um voo de avião até a chegada por rodovia a uma cidade chamada “Nova Era”.

Na parte I “Voo”, a geografia de morros e vales mineiros é vista a partir da janela do avião. O eu-poético representa tal geografia com bonitas metáforas, nas quais Minas vista do céu lembra “jenipapo maduro” e seus montes se tornam “sinuosas serpentes caudais”. Ao final, há uma paráfrase com o nome do principal aeroporto e da capital: “E chego, enfim, aos confins de Minas:/Horizontes”.

Na parte II “Penso”, ao mesmo tempo em que o eu-poético faz considerações sobre a terra mineira que se aproxima devido à aterrisagem do avião, ele reflete sobre a vida. Assim, configura-se a estrofe:

“Chuva ausente, terra enxuta,

A vida, a luta.

Assusta!”

Na parte III, escrita no ano 2000, temos uma crítica à destruição dos montes tão caraterísticos de Minas, outrora senhores dos sertões de Guimarães Rosa. Não é à toa que essa parte se chama “Pedreira”, e seus versos, que merecem ser mencionados na íntegra, nos fazem lembrar as denúncias tão atuais de outro escritor, o indígena Ailton Krenak, membro da Academia Brasileira de Letras, que diz a respeito das empresas de mineração como a Vale: “comeram as montanhas de Minas”.

“O homem escolhe um monte,

Tira o verde, fere a terra

Quebra pedras.

Câncer na crosta

Do planeta Agonia.”

Ao nomear o planeta Terra pela alcunha “Agonia”, também podemos propor um dialogismo com a encíclica Laudato Si, do Papa Francisco, no trecho que diz “a criação sofre em dores de parto”. Assim, a arte literária, através da voz conduzida por Aquino, prova que está sempre na vanguarda das questões universais e serve de denúncia ante as corrupções e injustiças.

Encerrando o poema, temos a última parte, intitulada “Nova Era Minas”, na qual o eu-poético já está em terra firme e percorre uma rodovia com destino à cidade de Nova Era. Aqui novamente temos tanto algumas referências a aspectos da cultura daquele estado: “Não há nada mais mineiro/ que uma tarde de domingo” […] Não há nada mais domingueiro que o povo mineiro”, quanto críticas cheias de polissemias à destruição perpetrada pelas mineradoras, em diálogo com Drummond, de quem faz uma paráfrase:

“E ainda há Minas, José!,

Apesar das estradas esfaceladas

Ante a pujança do aço

No doce vale.”

Espumas, p. 20, é uma curta composição poética na qual as ondas do mar são personificadas e descritas com tintas metafóricas. As ondas “correm léguas, feito eu;”/ feito línguas, lambem praias, / e beijam a terra, na carícia que se estende/ feito um manto sobre a areia.”

Em “A casa nasce das águas” temos uma homenagem à Cora Coralina na qual é a ausência da poeta que dá o tom ao poema, simbolizada pela casa que “está só e não há mais quem lhe varra o chão/ e espane o pó das histórias”. A casa de Cora retratada no poema está indissociável do rio, ela “nasce das águas”, pois é assim que a vemos quando visitamos Goiás. Novamente aqui temos um exemplo da imagem fotográfica criada por Aquino a partir de suas escolhas linguísticas e semânticas. Ao final, temos os versos “Rio Vermelho resmunga/ Rio velho, triste…/ Rabugento, o Rio Vermelho!”, numa alusão sutil à poeta que, segundo consta, era mal-humorada no trato pessoal.

Em “Sputnik”, p. 203, novamente temos as memórias da infância, mas desta vez atrelada a um marcante fato histórico, o lançamento do programa e do satélite russo Sputnik em 1957, que iniciaria a corrida espacial com os americanos. O poeta utiliza o evento para a partir dele fazer uma jogada com a ambiguidade da palavra espaço no verso: “Goiás, meu espaço, tão grande e inteiro em 1957!” para depois, na estrofe seguinte, mostrar o quão desimportante era esse grande feito humano diante da infância interiorana, ignorante das grandes novidades do mundo:

“Caldas Novas que não sabia (talvez!)

Do Sputnik e era ainda

A vida inteira da minha infância:

Seis ruas de cascalho e regos

(por que, em poesia exigem regato,

Se eram regos os miúdos córregos da minha terra?)

Observa-se que o eu-poético faz uma consideração metalinguística sobre a distância da erudição exigida na alta poesia e o uso do vernáculo popular que, a seu ver, é o que melhor retrata as cenas da infância.

Em “Passagens” vamos encontrar também a presença de odes, ou seja, poemas feitos em homenagens a pessoas do relacionamento do autor e de personalidades de reconhecida importância. Os elementos familiares pai e mãe, por exemplo, mostram-se como centrais na formação do poeta e de seu caráter. A lembrança deles é retratada com ternura. Em poucos versos, Aquino dá aos leitores uma biografia deles.

 Em “Mãe”, p.204, vê-se que ela não é apenas a nutriz, mas aquela que:

“deu-me formas, palavras, cores, paladares,

música, dimensões, poesia

 e o sentir,

que não se é poeta impunemente.”

Em “Pai”, p. 206, temos a figura do pai como um porto seguro, um ser admirado por sua humildade e respeito em relação à individualidade dos filhos, demonstrado por:

“Esse falar tão pouco, esse quase

 não dizer porque é preciso

 nos deixar à vontade

para o acerto e os erros”.

Em “Filhos”, p.205, são eles os homenageados no poema de final bem-humorado. O eu-poético tem três filhos adultos e, de repente, se vê pai de um temporão que:

“corre e sobe e desce

e exige e faz e recomeça

tudo

como se tudo se fizesse fácil.

— Ó Lucas! Teu pai é cinquentão!

“Ao Imortal caído”, p. 218, escrito em 1997 em homenagem a Bernardo Élis, é uma ode à altura de nosso grande escritor, único goiano a fazer parte da ABL. Aqui temos uma amostra de que Aquino consegue trabalhar muito bem com uma poética mais clássica, assim como em “Diversifico”, p. 219, que louva o poeta Vinicius de Moraes e faz um paralelo entre a coragem do poetinha no enfrentamento à ditadura militar e o medo do eu-poético de se expor e sofrer duras consequências.

“Dói-me ouvir, Poeta Imenso de versejar constante,

Seus louvores `Pátria que te pôs no exílio

Quando a Nação de milhões de filhos

Pedia pão, poesia e canto.

Dói em mim a dor de exílio,

Eu que me ocultei em verdes anos

Por medo do verde oliva de surrentas vestes.

Eu, que me ocultei no medo de sofrer nas grades

Temendo o tempo de correr ao mundo de línguas outras,

De rostos tristes, de sonhar contido…

Embora em “Passagens” tenhamos um poeta mais comedido, no qual o elemento erótico, por exemplo, tema de outras obras suas, praticamente não aparece, a crítica social incisiva, tão presente no humanista Aquino, surge de tempos em tempos, como em “Estação de esperar Natais”. Esse poema começa com uma descrição do Natal no Cerrado, bem diferente das cenas de cartões postais e de filmes americanos, já que no lugar da neve temos a chuva, que deixa tudo mais verde e cheio de vida. Contrastando com essa descrição telúrica, logo o eu-lírico começa uma reflexão amarga carregada de fina ironia sobre o “Espírito natalino” hipócrita, em que a caridade é seletiva e tem uma época do ano para acontecer.

“Ao Natal de Jesus, seremos felizes.

Compraremos presentes de agradar parentes,

Falaremos palavras de alegrar amigos,

Juraremos amor

Ainda que incapazes de afagar menino de rua,

Perdoar condenados, alentar dores.

Continuamos capazes de falar em Jesus

Porque Ele aniversaria e todos nos sentimos

Parte de suas chagas.

Mas não somos mais que pedaços de sua cruz.”

Já “Quotidiano” traz uma poética diferente, moderna, ágil, que faz uma crítica à vida moderna nas cidades grandes, com seus shoppings, seus barulhos, suas “multiformas, multicores” e seus excessos, que desumanizam as pessoas e artificializam tudo, até a comida, que vendida como gourmet, é insossa e “— Parece plástico!”

Como conclusão, após a leitura dos poemas de “Passagens”, podemos dizer que temos um poeta que retrata com sensibilidade e fina beleza as memórias de uma infância na paisagem rica de águas do cerrado Goiano e o desabrochar do menino em poeta que circula por outras cidades, incluindo o Rio de Janeiro com seu mar e suas figuras famosas. As memórias, entretanto, não se alienam da realidade presente nem do que é necessário denunciar poeticamente. Além disso, ao utilizar jogos semânticos e um ecletismo na forma e nos temas, Aquino consegue um bom equilíbrio entre o clássico e o moderno.

Nesse fragmento poético de Aquino, representado por “Passagens”, a família é o centro; a meninice livre um dos temas; a natureza preservada e seu oposto, a cidade grande, os cenários; a poesia uma profissão de fé que o acompanhará pela vida afora. O geógrafo por formação será capaz de reproduzir poeticamente essas paisagens brasileiras e seus habitantes, enquanto o jornalista, com seu olhar afiado para os problemas sociais, colocará, aqui e ali, pitadas de crítica, sarcasmo e ironia em seus versos.

Luiz de Aquino demonstra nesse livro que é capaz de um fazer poético eclético, que sabe fazer as escolhas vocabulares certas e aproveitar-se da influência de diversas escolas literárias para produzir uma poesia que tem voz própria e lugar de destaque no cânone goiano.

Simone Athayde, poeta, prosadora e crítica literária, é colaboradora do Jornal Opção.

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Fonte: Jornal Opção

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