Gravar música brasileira é sempre um gesto de coragem, memória e afirmação. Quando a Orquestra Filarmônica de Goiás dedica três álbuns à obra orquestral de César Guerra-Peixe, estamos diante de um ato artístico que ultrapassa as barreiras regionais e simbólicas: trata-se de fazer justiça a um dos compositores mais relevantes da história musical do Brasil.
Fundada nos anos de 1980, pelo maestro Braz Pompeu de Pina, a Filarmônica de Goiás vem se reinventando e se consolidando como um dos principais corpos sinfônicos do país, e isso longe dos grandes centros tradicionais, o que só reforça o mérito da sua trajetória. A orquestra realiza concertos didáticos, apresentações em praças, centros culturais e escolas, alcançando públicos diversos e formando novas escutas. Sob a regência de Neil Thomson, sua presença no catálogo da gravadora internacional “Naxos” é mais do que simbólica: é a projeção de um Brasil musical para o mundo.
E que Brasil encontramos nas obras de Guerra-Peixe! Violinista precoce, arranjador, regente, pesquisador do folclore, mestre de compositores e polemista apaixonado, César Guerra-Peixe (1914–1993) foi um dos nomes centrais na construção de uma linguagem musical brasileira. Sua obra atravessa o dodecafonismo, que ele absorveu criticamente com Koellreutter, e, desemboca em uma produção nacionalista vibrante, marcada pelo contato profundo com o folclore nordestino e pelo compromisso com a identidade sonora do país.

Neste novo álbum, ouvimos três faces distintas do compositor: a Sinfonia nº 1, uma obra transparente e audaciosa que teve sua estreia em Londres, em 1946; o Noneto, de feições camerísticas e espírito dodecafônico; e, por fim, a Sinfonia nº 2 – Brasília, escrita em 1960, verdadeira celebração sinfônica do país em transformação. Esta última une orquestra, coro e texto falado em uma composição exuberante, que homenageia a capital recém-inaugurada, na época, traduzindo em música a utopia modernista daquele momento histórico.
Gravar Guerra-Peixe é mais do que reverenciar um mestre: é escancarar a riqueza de um Brasil musical que, tantas vezes, permanece à margem. É também reconhecer que, mesmo fora do eixo Rio–São Paulo, é possível construir excelência. A Filarmônica de Goiás prova isso.
Com interpretações sensíveis e precisas, Neil Thomson e os músicos da Filarmônica captam, com nitidez, a multiplicidade estilística de Guerra-Peixe. Entregam a densidade do Noneto, a luminosidade da Sinfonia nº 1 e a vibração cinematográfica da Sinfonia nº 2 com maturidade e vigor.

Este disco é, enfim, uma ponte entre tempos e territórios: une o Brasil moderno de Brasília ao Brasil profundo dos maracatus e cocos; une a tradição sinfônica europeia ao grito festivo das feiras do interior. E nos lembra, com clareza, que a música brasileira tem muitas vozes, e, que todas merecem ser ouvidas.
Sugiro a audição do trecho “IV. Tambu” da Suíte Sinfônica nº 1 “Paulista”, interpretado pela Orquestra Filarmônica de Goiás sob a regência de Neil Thomson em um exemplo vibrante do domínio que Guerra-Peixe tinha sobre o ritmo, a orquestração e a linguagem popular brasileira.
Ouça com atenção: Guerra-Peixe traduz um universo de raízes pretas e populares em linguagem sinfônica refinada. É música de concerto que soa ancestral — uma ponte viva entre a oralidade rítmica e o rigor da escrita sinfônica.
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