Jovens da periferia de Recife em turnê internacional com artistas de países em guerra

Jovens da periferia de Recife em turnê internacional com artistas de países em guerra

Religião

“Nesse cenário, a Orquestra Criança Cidadã e o projeto Concertos pela Paz se afirmam como um contraponto, um gesto simbólico e concreto de resistência ao ódio”, diz João Targino, coordenador-geral da Orquestra Criança Cidadã de Recife/PE, que visa o resgate social de crianças carentes através da música. Atualmente, o projeto atende gratuitamente 400 jovens entre os 6 e 21 anos. Os alunos recebem aulas de instrumentos de cordas, sopros ou percussão, solfejo, flauta doce e canto coral.

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Leandro Ávila

Mais uma vez a arte se torna voz coerente na incoerência de um mundo marcado por guerras e tensões diplomáticas. Uma melodia sonora ecoa da periferia do Recife, em solo brasileiro, e alcança o mundo, unindo músicos de regiões de conflito e de vulnerabilidade social em uma pauta pela paz. Esses acordes harmônicos se unem à voz do Papa Leão XIV que, em meio ao sofrimento de tantos, tem se feito presença de oração, ação e apelo pela paz nas realidades em guerra pelo mundo:

“A imensa tragédia da Segunda Guerra Mundial terminou há 80 anos, em 8 de maio, depois de causar 60 milhões de vítimas. No atual cenário dramático de uma terceira guerra mundial em pedaços, como tantas vezes afirmou o Papa Francisco, também eu me dirijo aos poderosos do mundo, repetindo o apelo sempre atual: ‘Nunca mais a guerra!’”

Esse pedido ressoa em um novo clamor pela paz mundial, numa turnê internacional que transpõe fronteiras, idiomas, nacionalidades, diferenças e rivalidades, sob o espírito pacifista de um peregrinar pela reconciliação. Artistas de países feridos por conflitos bélicos e tensões históricas unem-se a integrantes da Orquestra Criança Cidadã — projeto que nasceu em Recife/PE e promove cidadania por meio da arte — em uma série de Concertos pela Paz que serão realizados na Ásia e no Vaticano, para sensibilizar o mundo diante da urgência de pôr fim a confrontos, destruição e mortes.

Concerto pela Paz chega ao Papa

A delegação é formada por jovens do Brasil, Rússia, Ucrânia, Irã, Palestina, Israel, Coreia do Sul e Coreia do Norte, e, segundo a organização da turnê, deve encerrar as apresentações com um concerto para o Papa Leão XIV, na Praça de São Pedro, em Roma, no dia 8 de outubro. Os detalhes da turnê internacional e do projeto de Recife vêm em uma entrevista concecida por João Targino, coordenador-geral da Orquestra Criança Cidadã.

Neste tempo em que vivemos, marcado por tanta instabilidade bélica, com guerras e conflitos em diversos continentes, como se avalia a importância de iniciativas como a da Orquestra Cidadã, que une artistas de países em conflito e em situações de vulnerabilidade, transformando a arte e o belo em um grito pela paz?

A música, enquanto linguagem universal, tem a capacidade singular de transpor fronteiras políticas, culturais e ideológicas. Vivemos um tempo de intensas divisões, no qual a beligerância insiste em prevalecer sobre o diálogo. Nesse cenário, a Orquestra Criança Cidadã e o projeto Concertos pela Paz se afirmam como um contraponto, um gesto simbólico e concreto de resistência ao ódio. Ao reunir artistas oriundos de nações em conflito ou de contextos de vulnerabilidade, afirmamos que o belo pode ser instrumento de reconciliação, de reconhecimento da humanidade comum que nos une. Trata-se, portanto, de um chamado à paz que não se faz por palavras vazias, mas por meio de uma experiência estética que atinge a razão e, sobretudo, o coração.

Como foi possível articular a união da orquestra com músicos de diferentes partes do mundo e construir esta turnê internacional?

Não se trata de obra individual, mas de um esforço coletivo sustentado por anos de perseverança e de credibilidade construída. A Orquestra Criança Cidadã nasceu no Recife como um projeto social voltado para a transformação de vidas pela música. Com o tempo, consolidou-se como referência, obtendo reconhecimento no Brasil e no exterior. A partir dessa trajetória, foi possível estabelecer pontes com instituições, governos, organismos internacionais e artistas de diversas nacionalidades. A turnê internacional decorre dessa rede de confiança, somada ao apoio de parceiros que acreditam no poder transformador da música. A articulação se dá pela convicção de que estamos servindo a uma causa que transcende interesses particulares: a construção de um testemunho coletivo pela paz.

De que forma se dá a ação do projeto e quais as implicações que  percebe na vida dos jovens brasileiros participantes, considerando as realidades em que estão inseridos?

O projeto atua em comunidades de extrema vulnerabilidade social, oferecendo ensino musical de excelência aliado à formação cidadã. Não se trata apenas de ensinar técnica instrumental, mas de abrir horizontes, despertar potenciais e incutir valores de disciplina, respeito e solidariedade. Os jovens brasileiros que integram a Orquestra Criança Cidadã são oriundos de contextos marcados pela carência material e, muitas vezes, pela ausência de perspectivas. Ao vivenciarem a experiência de integrar uma orquestra internacional e de dialogar com músicos de diferentes culturas, eles se percebem como protagonistas de uma história maior. A música, neste caso, não é mero ornamento, mas instrumento de emancipação. Os frutos são visíveis: jovens que ascendem academicamente, profissionalmente e, sobretudo, como seres humanos mais conscientes do seu papel no mundo.

Acredito que a paz não é uma utopia distante, mas uma construção diária, feita de pequenos gestos que se multiplicam e ganham escala. A Orquestra Criança Cidadã e os Concertos pela Paz são um desses gestos. Se conseguirmos tocar corações, despertar consciências e provocar reflexões por meio da música, já teremos cumprido uma parte essencial da nossa missão. Minha palavra final é de esperança: que esta iniciativa inspire outros a acreditar no poder transformador da arte e a trabalhar incansavelmente pela paz que todos almejamos, mas que depende de cada um de nós para se tornar realidade.

Na música, um espaço de acolhimento e possibilidades

A musicista Ana Clara de Souza, de 17 anos, integrante da Orquestra Criança Cidadã, fala da alegria de participar de sua primeira viagem internacional. A violista, que perdeu o pai aos 9 anos vítima de um câncer no fígado, encontrou na música a oportunidade de construir uma vida com novas perspectivas de futuro. Hoje, integra a Orquestra Jovem, formada por destaques do projeto.


Ana Clara de Souza, de 17 anos, que hoje participa da Orquestra Jovem   (Augusto Cataldi)

Quais horizontes o projeto abriu para a sua vida em comparação com a realidade que você vivia antes da música?

O projeto mudou completamente a minha vida. Eu cresci no bairro do Coque e enfrentei muitas dificuldades. Ainda criança, perdi meu pai, o que foi um momento muito doloroso para mim. Quando entrei na orquestra, aos 11 anos, encontrei não só a música, mas também um espaço de acolhimento e de possibilidades. A viola se tornou a minha paixão e, através dela, conheci lugares, pessoas e experiências que nunca imaginei viver. Hoje eu posso sonhar mais alto, seja como musicista ou como futura psicóloga. O projeto me abriu horizontes que antes eu não enxergava e me mostrou que a persistência realmente vale a pena.

Como você enxerga essa ação pela paz no mundo, especialmente diante do sofrimento de tantos jovens que vivem em meio a conflitos?

Quando penso na paz, penso em tudo o que a música já fez por mim. Ela me ajudou a superar perdas, lidar com minhas inseguranças e acreditar em mim mesma. Se a música foi capaz de transformar a minha vida, acredito que também pode tocar a vida de jovens que enfrentam situações ainda mais difíceis, como aqueles que vivem guerras e violências diariamente.

Estar ao lado de músicos vindos de realidades tão diversas, inclusive de regiões em conflito, mostra que podemos nos unir e falar a mesma língua: a música. Essa ação é um exemplo de que a arte pode ser caminho de cura para feridas profundas e pode espalhar esperança em meio às perdas.

Qual o sentimento diante desta oportunidade?

Sinto uma gratidão enorme por cada oportunidade que recebi até aqui. Já vivi momentos de frustração quando não fui aprovada em turnês anteriores, mas aprendi que a persistência abre portas. Agora vou realizar minha primeira viagem internacional com os Concertos pela Paz. É um sonho que carrego comigo e com a minha família, que sempre esteve ao meu lado. Quero que cada apresentação seja uma forma de agradecer e também de mostrar que, mesmo diante das dificuldades, é possível vencer. A música mudou a minha vida, e espero que a nossa mensagem toque o coração de muitas pessoas pelo mundo.

A turnê internacional

A turnê acontece de 26 de setembro a 9 de outubro, com concertos no Youngsan Art Hall, em Seul (Coreia do Sul); no Parque Memorial da Paz e no Teatro YMCA, em Hiroshima; e na Expo 2025, em Osaka, no Japão. O encerramento será com um concerto na Praça de São Pedro, no Vaticano, diante do Papa Leão XIV, no dia 8 de outubro.

Apesar de ser a primeira experiência internacional para alguns integrantes, a Orquestra Criança Cidadã já acumula em seu currículo apresentações nacionais e internacionais, em países como Alemanha, Portugal, Estados Unidos, Itália, Argentina, China e Israel. Os convites são frutos da qualidade artística do grupo e do impacto social do trabalho desenvolvido pela Associação Beneficente Criança Cidadã (ABECC).

Os meninos e meninas selecionados em Pernambuco residem no Coque, bairro com um dos piores índices de desenvolvimento humano da capital, e em Camela, distrito modesto da cidade de Ipojuca, na Região Metropolitana. Encontraram no aprendizado da música uma brecha social para reduzir o risco de violências, crime, abandono, indiferença pública, falta de perspectivas comum a crianças e adolescentes da mesma faixa etária em localidades pobres.

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