O latim é o avô do português? Se é, afinal, quem é o pai? O galego. Pois é: de acordo com o linguista português Fernando Venâncio, no livro “Assim Nasceu uma Língua — Sobre as Origens do Português” (Tinta da China, 304 páginas), a Língua Portuguesa deriva do Galego. Então, a rigor, tem dois pais ou duas mães?
Fernando Venâncio dizia: “Tento contar uma história, com a reserva que a história impõe sempre. E a verdadeira história é que o português é, historicamente, um fenômeno tardio. Há toda uma história anterior. Ao mesmo tempo, isso dá-nos uma grande tranquilidade. Porque o português sobreviveu até hoje, da melhor maneira, e tem o futuro pela frente, seja em que forma for”.

O linguista, escritor, tradutor, crítico literário e professor universitário morreu na sexta-feira, 30 de maio, aos 80 anos, em Mertola, Portugal.
Durante algum tempo, mantive diálogo com Fernando Venancio. A conversa começou a respeito de um texto meu, publicado no Jornal Opção, sobre Camões e a Língua Portuguesa (https://tinyurl.com/muy4nz9w).
Em seguida, ele me pediu um livro sobre o português brasileiro. Enviei pelo Correios (demorou um mês para chegar, Fernando Venâncio me disse).
Pouco tempo depois, recebo “O Português à Descoberta do Brasileiro” (Guerra & Paz, 136 páginas). Passei o livro para Irapuan Costa Junior, que fez uma bela resenha (https://tinyurl.com/2p9p8c2v). Fernando Venâncio leu, gostou e quis saber se o escritor, tradutor e ex-governador de Goiás era linguista e professor. Esclareci que não. “Escreve muito bem”, disse.

Uma das virtudes de Fernando Venâncio era manter aceso o diálogo, em geral via in box do Facebook ou pelo e-mail, que dizia ser mais “seguro”. Num dos textos, me disse que estava adoentado.
O linguista deu aulas, durante vários anos, na Universidade de Amsterdã. Era (é) respeitado na terra de Van Gogh.
Dono de um texto de rara fluência — consta que alguns linguistas e gramáticos escrevem “pedregulhos”, às vezes incontornáveis —, Fernando Venâncio também escrevia ficção.
Nas redes sociais, mantinha contatos com especialistas e leigos. Apreciava polêmicas e não fugia delas — sempre com elegância e, frise-se, firmeza.
O livro “Assim Nasceu uma Língua” rendeu o Prémio de Ensaio Jacinto do Prado Coelho a Fernando Venâncio.
Ao jornal português “Público”, o professor, tradutor e escritor Marco Neves disse que o “livro [“Assim Nasceu uma Língua] “era de um de um estudioso da língua mas também de alguém que sabe escrever muito bem”.
“João pára e, depois, continua a caminhar.” Ah, o acento de “para” caiu, mas, digo eu, caiu mal; devia ter continuado. Portugal não respeita, em linhas gerais, o Acordo Ortográfico de 1999, ao qual nós, brasileiros, obedecemos como cordeirinhos de Deus.
Entre os críticos do Acordo Ortográfico, Fernando Venâncio era um dos mais militantes. Os linguistas deveriam ter se manifestado, enfatizou, a respeito de um “produto mal-enjorcado [feito às pressas], elaborado em cima do joelho, rejeitado por todas as entidades então consultadas”.

A vasta obra de Fernando Venâncio
Entre as ficções de Fernando Venâncio estão “Um Selvagem ao Piano”, “Os Esquemas de Fradique”, “Beijo Técnicos e Outras Histórias”, “Último Minuete em Lisboa”, “Maquinações e Bons Sentimentos” e “Só o Meu Computador me Compreende”.
Fernando Venâncio publicou a coletânea de ensaios “Objectos Achados”, a antologia “Crónica Jornalística — Século XX” e o diário de viagens “Quem Inventou Marrocos”.
O único Nobel de Literatura português foi objeto de análise de Fernando Venâncio: “José Saramago — A Luz e o Sombreado”. Suas polêmicas foram reunidas no livro “Maquinações e Bons Sentimentos”.
O mundo fica mais pobre, culturalmente, sem o “luminoso iluminista” Fernando Venâncio. As línguas, portuguesa e brasileira, se tornaram, sob seu escrutínio, mais ricas — e tão independentes quanto conectadas. Porque a segunda, sendo filha da primeira, acabou por se tornar sua irmã. Não a mais velha, porém a que tem mais falantes.
O post Morre Fernando Venâncio, o linguista que mostrou que o português deriva do galego apareceu primeiro em Jornal Opção.