Narcotráfico migra para internet e facções se fortalecem por meio de redes sociais

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Organizações criminosas têm usado as redes sociais como um meio de comunicação. O Jornal Opção acompanhou e teve acesso a grupos exclusivos do Facebook e do WhatsApp autodenominados pertencentes ao crime organizado, especificamente do Primeiro Comando da Capital (PCC), Comando Vermelho (CV) e Amigos do Estado (ADE) — essa última goiana e tida como aliada da facção paulista pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público de Goiás (MPGO).

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Ao longo de um mês, a reportagem acompanhou e interagiu com criminosos responsáveis por postagens voltadas para o recrutamento de mão de obra criminosa, apologia ao crime e a promoção do líder do PCC, apontado como de Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola. Vídeos de execuções bárbaras, imagens de julgamentos e os “decretos” de morte proclamados pelos “tribunais do crime” contra supostos estupradores e suspeitos de furtos e roubos inundam os espaços, que chegam a mais de 1,4 mil membros — número apenas de um grupo do PCC, facção mais atuante nas redes sociais identificada pelo Jornal Opção.

Um dos grupos controlado por um membro autodeclarado “Sintonia do Estado” do PCC, serve como porta de entrada para futuros membros na facção. Com o nome de “Primeiro Comando da Capital”, o espaço funciona como uma espécie de central de atendimento. “Missões” de assassinatos e “disciplinas” são compartilhados pelos “irmãos” (como são chamados os faccionados na linguagem carcerária), e dúvidas sobre como se juntar a facção são esclarecidas. Alguns usuários chegam a se colocar à disposição para praticar crimes, como ser “laranja” para lavar dinheiro e até mesmo atuar no tráfico. 

“Bora articular ai, parceiro, entendeu? Bora colocar aí vídeo louco, fazer apologia ao nosso comando, entendeu, mano? Fazer apologia ao nosso crime, entendeu, pô? A gente tá colocando aí missão louca, nossa referência. Quem for irmão de lealdade, de camisa, é uma família. É o seguinte, se quiser levar na frente da contenção ai meu parceiro, a gente vai tá te infiltrando ai no crime, parceiro”, dialoga o sintonia em uma sequência de áudios em resposta a um usuário que estaria disposta a “entrar na caminhada”.

O criminoso, porém, alerta que é necessário entrar em contato com os sintonias dos respectivos estados dos postulantes a criminosos. Ele reforça que coragem e lealdade são necessárias para se filiar a facção, que é como uma família “unida contra o sistema e os vermes”, nas palavras do criminoso. Enquanto passa os ensinamentos e os valores do PCC, o sintonia é interrompido por outro usuário, que questiona se não há nenhum CV – membro do Comando Vermelho – acompanhando o movimento do grupo e “pescando as ideias”.

“Estamos em todos os Estados, em todo o país, tudo. Mas para batizar não é só chegar e falar que quer batizar não, tem que puxar a caminhada do cara que quer batizar, ver o que ele já fez pelo crime. Vamos se controlar ai, tá achando que batizar é fácil assim? Primeiramente você precisa entrar em contato com o sintonia do seu Estado e achar um padrinho que vai ser seu responsável. Temos que organizar, o crime é organizado, tá ligado?”, questiona.

Embora ousados, grande parte dos integrantes de organizações dos grupos é anônima. O uso de redes sociais por parte de criminosos não é novo. O anonimato garantido pela internet é um dos recursos preferidos de criminosos, escancarando que empresas como Google e a Meta não têm agido com a energia e a presteza necessárias para enfrentar os riscos.

O anonimato na internet, de acordo com o advogado especialista em direito digital, Cristiano Melo, facilita a criação de contas e perfis com pseudônimos ou dados falsos. As empresas não exigem documentação real do criador da conta. Há ainda o uso de tecnologias que ocultam o endereço IP real do usuário, como as Redes Privadas Virtuais, as VPNs, ou o sistema Tor, que direciona o tráfego por uma rede de servidores, dificultando o rastreamento. E, por fim, a comunicação criptografada de ponta a ponta, que, embora importante para a privacidade, também pode ser utilizada por criminosos para planejar ações sem serem monitorados.

“As plataformas possuem um poderio tecnológico e financeiro imenso. Para inibir essas práticas, poderiam intensificar o uso de Inteligência Artificial e machine learning para detecção proativa de padrões em conteúdo e comportamento, identificando crimes antes que se espalhem. Além disso, é crucial ampliar e qualificar a moderação humana, com equipes dedicadas e treinadas 24 horas por dia. Várias empresas descumprem ordens judiciais ou dificultam acessos, isso atrapalha e muito a ação das forças policiais e do judiciário”, explica.

Banco digital 

Além de usar a internet para se expandir e promover o crime organizado, facções também têm usado plataformas para lavar dinheiro. Em maio deste ano, a Polícia Federal (PF) realizou operação contra o núcleo financeiro da ADE, que movimentou mais de R$ 70 milhões em oito meses por meio do banco digital 4TBANK – empresa financeira fantasma criada pelo próprio PCC.

A quantia movimentada foi quase exclusivamente fruto do tráfico de drogas. A ADE tem sido uma das principais importadoras de drogas para o Estado, ao lado do PCC e do CV. Conhecido pela posição estratégica para o escoamento de drogas, Goiás é disputado pelas facções como uma rota do tráfico aéreo e viário. 

No entanto, grande parte das apreensões ocorreram pelo meio terrestre. Apenas a Polícia Rodoviária Federal (PRF) apreendeu 5.202.800 quilos de drogas, além de 1.350 comprimidos de anfetaminas em 2025. O montante, avaliado em mais de R$ 39 milhões, é dividido em: 

  • 1.127,9 kg de cocaína;
  • 1 kg de crack;
  • 43,9 kg de haxixe;
  • 3.526,4 kg de maconha;
  • 503,6 kg de skunk;
  • 1.317 unidades de anfetaminas/barbitúricos;
  • 33 unidades de ecstasy.

“As principais rotas do tráfico que passam por Goiás ligam a região de fronteira com o Paraguai e a Bolívia aos grandes centros consumidores do restante do país. As rodovias federais com maior número de apreensões pela PRF em Goiás são a BR-060, BR-153 e BR-364. Essas vias são corredores logísticos importantes e, frequentemente, utilizados por criminosos para o transporte de entorpecentes e outros produtos ilícitos”, explica o PRF Victor Rustiguel.

De acordo com ele, a BR-070, que liga Goiás à região de fronteira via Mato Grosso, também tem relevância estratégica nas ações de combate ao tráfico. Parte das drogas apreendidas pela PRF em solo goiano tem como origem países produtores da América do Sul, especialmente Bolívia e Paraguai – principais fornecedores de drogas para as facções brasileiras. 

Os entorpecentes entram no Brasil por Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, e atravessam Goiás rumo a grandes centros como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e cidades do Nordeste. 

“Na maioria das apreensões, os transportadores são apenas ‘mulas’ ou intermediários, e o trabalho de inteligência em parceria com os demais órgãos da justiça busca identificar e desarticular os responsáveis pelo financiamento e logística do tráfico”, reforça.

PCC, CV e ADE

Com cerca de 5 mil faccionados, o tráfico em Goiás é dividido pelo PCC (cerca de 2 mil membros), CV (cerca de 2 mil membros) e ADE (cerca de 1 mil membros). Membros da ADE foram responsáveis por 90% dos homicídios praticados em Goiânia em 2021, estima o MPGO. Há pelo menos 10 anos em atuação, a ADE — fundada por Engri Júnior de Almeida Maia, o Junior Trindade, procurado internacionalmente pela Interpol e um dos 10 criminosos mais procurados do Brasil na lista do Ministério da Justiça e Segurança Pública — tem se expandido é já possui tentáculos Mato Grosso, Paraná, Minas Gerais, Tocantins, Bahia e Mato Grosso do Sul.

A facção foi responsável por 40% dos homicídios praticados em Goiás apenas em 2021, tendo movimentado mais de R$ 1 bilhão com a venda de drogas e armas, de acordo com operação da Polícia Civil de Goiás (PC) em 2022. O MPGO trabalha com a hipótese de que a ADE surgiu a partir da migração de batizados do PCC, que fundaram a organização em solo goiano. 

“Até onde temos conhecimento, ela [ADE] não nasceu a partir de movimentos carcerários, mas a partir de negócios de tráfico de drogas, que tinham por origem também membros do próprio PCC. Não se sabe quanto tempo isso levou, mas a partir daí ela foi se estruturando aos poucos. Isso exige poder, mortes, conspirações internas entre esses criminosos”, afirmou o promotor do Gaeco, Marcelo Borges, em entrevista ao Jornal Opção

O surgimento da ADE é contrário ao do “amigo” PCC e do “inimigo”, CV. A máfia paulista surgiu a partir de uma aliança na Casa de Custódia de Taubaté na década de 1990, mas ganhou notoriedade em 2006, com os atentados terroristas, em São Paulo – seu berço. 

O CV, conhecido por ser mais sangrento, surgiu ainda na década de 1970, no presídio da Ilha Grande. O Gaeco não possui dados concretos de quando as organizações chegaram em Goiás. O promotor explica que tanto o PCC, a ADE e o CV, trabalham de forma hierarquizada, sendo a máfia paulista a que mais se destaca pela organização estrutural, tendo até mesmo o próprio estatuto (comentado pelos sintonias em redes sociais). 

Porém, em razão das guerras travadas pelo controle do território em Goiás, o PCC abriu brechas na “lei” há pelo menos quatro anos e passou a recrutar menores de idade, prática antes estritamente proibida. Para ingressar na organização, descrita pelo Gaeco como uma empresa, é preciso passar por uma espécie de seleção, onde até mesmo entrevistas são realizadas. 

A prática também é observada na ADE e no CV. “Missões” podem ser impostas e a não conclusão ou a falha pode significar a perna de morte no chamado “tribunal do crime”. A ação fez com que o PCC fosse a principal organização criminosa atuante no Estado.

“Goiás já foi o entreposto em inúmeras oportunidades de drogas vindo da Bolívia e Colômbia para outros países, especialmente por parte do PCC. O PCC já se faz presente em vários países, na Europa, principalmente em Portugal”, disse. 

Para inibir a atuação do crime organizado, o Estado de Goiás transferiu pelo menos 10 líderes regionais do PCC, CV e ADE para presídios federais. As ações que envolvem alto grau de sigilo, preparação e segurança foram realizadas pelo MP com o auxílio das forças de segurança pública estaduais e federais. As mudanças de cárcere levam em consideração uma série de requisitos, como a periculosidade do preso e possíveis planos de fuga. 

O investimento na Polícia Penal (PP) e a cooperação entre o MPGO e Gaecos de outros estados fez com que Goiás evitasse o domínio de grandes regiões por parte das organizações – cenário que não é observado em outros estados da federação, como Rio de Janeiro (pelo CV) e São Paulo (pelo PCC). A fortificação e a ampliação da segurança, no entanto, não são bem vistos pelos criminosos, de acordo com Marcelo. 

Buscando se livrar do cárcere, uma das lideranças do PCC, em Goiás, arquitetou um plano de fuga ousado: usar táticas de guerrilha para ser resgatado do Núcleo de Custódia do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia, considerado um dos dois presídios de segurança máxima do estado. Usando advogados, núcleo conhecido como “Sintonia dos Gravatas”, a liderança da maior organização criminosa do Brasil articulou o resgate, que iria contar com fuzis .50 — armas de guerra usadas para derrubar aeronaves e perfurar blindados. Casas ao redor do presídio também seriam alugadas para armazenar os recursos destinados à ofensiva.

“O custodiado transmitiu o recado à advogada, que foi interceptado pela Polícia Penal. O plano foi abortado devido a Operação Família no final de 2023. Em 2024, dois advogados foram condenados em relação a esse caso. O preso acabou sendo transferido para a Penitenciária Federal de Mossoró”, afirmou o promotor.

Junior Trindade, líder e fundador da ADE | Foto: Reprodução

Presídios de segurança máxima 

Conforme relatou Marcelo Borges, o Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia e o Presídio de Planaltina, no Entorno do Distrito Federal, são consideradas as unidades de segurança máxima de Goiás – equiparadas às penitenciárias federais. As duas unidades são responsáveis por abrigar faccionados e lideranças ligadas ao PCC, CV e ADE. A forma como os presos são divididos e o convívio entre eles não foram revelados pelo promotor por questões de segurança. 

O próprio líder máximo da máfia paulista, Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, já esteve preso em Aparecida de Goiânia. O chefe da organização criminosa, que está atrás das grades desde 1999, chegou à unidade no dia 9 de fevereiro de 2002, mesmo ano em que assumiu o comando do PCC após uma briga interna contra os fundadores da organização. 

No complexo aparecidense, o líder ficou por 16 dias totalmente incomunicável até ser novamente transferido para o Complexo Penitenciário da Papuda no dia 15 do mesmo mês. A Papuda, em Brasília, atualmente é um dos cinco presídios federais de segurança máxima do país.

A vinda do traficante para Goiás, de acordo com a Diretoria-Geral de Polícia Penal (DGPP), foi realizada sem o conhecimento do Judiciário ou com autorização diversa do juízo da Execução Penal de Brasília. Quando o órgão tomou conhecimento do paradeiro de Marcola, determinou a devolução imediata para a Papuda. 

O líder do PCC já passou por outras 15 prisões e, atualmente, se encontra detido na unidade penitenciária do DF desde de 2023, após ser remanejado do Presídio de Porto Velho, em Rondônia, por conta de um plano de fuga frustrado. Já é a terceira vez que ele cumpre pena na capital federal.

“[Esses presídios] possuem uma estrutura muito profissional, que proporciona ao mesmo tempo isolamento dessas pessoas e também o cumprimento digno da pena. As autoridades não devem nada se comparado às unidades federais dados ao números da atuação das forças de segurança. Há sempre o constante monitoramento das ações de violência e ameaça, que são características destas facções criminosas”, diz.    

Parcerias 

O promotor diz que a atuação conjunta entre as forças de segurança estaduais e federais tem sido fundamental para inibir a expansão de faccionados em Goiás, principalmente dentro dos presídios goianos. A parceria entre o MP e a Polícia Penal (PP), Polícia Militar (PM) e Polícia Civil (PC) tem gerado frutos, conforme Marcelo.

“Geralmente, lideranças de facções criminosas estão encarceradas. São pessoas que têm penas de 40, 50 anos de prisão. Em Goiás, temos pessoas que possuem dezenas de anos de prisão e, sendo bem monitoradas, isso afeta até a criminalidade nas ruas porque as mensagens não são repassadas”, concluiu.

CPP de Aparecida de Goiânia | Foto: Reprodução

 



Fonte: Jornal Opção

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