Estava sentado no Banco Central e pensando na sorte. Quando veio para Brasília no primeiro mandato presidencial, o Congresso era sereno e diáfano, e havia congressistas mansos que se aproximavam para comer nas mãos.
Na Praça dos Três Poderes até os postes o saudavam, tanto que fez de um deles seu sucessor. Na que desembarcara agora do carro oficial, a única mulher era uma vendedora de flores. Custava a crer que em dois anos tivesse feito tantos estragos no país, constrangendo o planeta.
É um solitário a mais na cidade de solitárias e lustres. Tem uma barba de mosqueiro, o cabelo branco-azulado revolto, os olhos bem abertos. Quase aos 80 anos, o que lhe delata o estado de sua saúde é o cansaço da população.
Voltou ao Distrito Federal depois de dois mandatos. Naquela manhã, sentia-se a salvo de toda verdade, mas os anos de glória no poder haviam ficado para trás sem remédio.
— Sua dor está do outro lado da rua — disse-lhe ao celular o ministro de Articulação denunciando o Congresso.

— Minhas articulações estão péssimas e as piores não são as dos joelhos — respondeu o presidente.
Em seguida, perguntou qual era a margem de risco de queda.
— Qual queda? Nas pesquisas? Da moeda? Das agências de risco? Tropeçar e ir ao chão? Cair no banheiro? Não podemos dizer com segurança — alertou-o o auxiliar, interrompido pelo chefe.
— Nem me fale em segurança! — gritou o presidente, que observava o Atlas da Violência achando que esses temores fossem coisas do passado. Mas do atual pingava sangue.
Não era uma boa manhã para digerir má notícia. Depois de passar a noite com um emissário chinês das mídias sociais lhe despejando nos ouvidos o que se espera de um emissário submarino, havia saído muito cedo do Alvorada.
Passou no BC fazia mais de hora, sempre pensando em aumentar impostos, quando reconheceu ser seu outono patriarca. No dia anterior, atribuía a Deus uma falha que corrigira ao levar água ao sertão. Ressaltou a beleza que vê em si, reconheceu-se apaixonado e motivado, e ao fim garantiu que seus adversários jamais retornarão ao administrar o país.

Deu um 360º na praça com o olhar e ligou para o ministro das Obras:
— Por que não tem aqui [entre a sede do Executivo e os edifícios do Congresso] um monumento a mim como o que Putin fez para o camarada Stálin? — Não se sabe o que ouviu, até por ter dado poucos segundos ao interlocutor, e em seguida ordenou: — o nome da estátua tem que ser “A gratidão do povo ao líder-comandante”.
Levantou-se e, em vez de comprar da florista, arrancou uma rosa dos canteiros públicos bem cuidados pelo Governo do Distrito Federal (GDF) e a colocou na lapela.
A florista, servidora pública que trabalha como vendedora ambulante para suportar os juros do crédito consignado, ralhou com o afanador:
— Essas flores são do governo distrital, não são de Deus!
— São minhas, sim — respondeu o presidente, afastando-se com passos trôpegas tentando acertá-los.
Temia eventual encontro com estudantes, pois cortou R$ 42 bilhões e 300 milhões da Educação até o fim da década.

O ranking do CWUR, que avalia instituições de ensino superior do mundo inteiro, mostrou tombo de 87% das universidades brasileiras e a federal mais bem classificada ficou em 331º lugar.
Estavam, a toda pressa, preparando a recepção ao pessoal do Fórum Parlamentar do Brics, grupo de nações cujo banco colocou o Poste. No grupo de WhatsApp dos líderes partidários, postaram um cartaz da terrorista Ação Libertadora Nacional (ALN) com o desenho de um mapa do Brasil em forma de mão com imensa espingarda e um slogan da esquerda na época: “Trabalhador, arme-se e liberte-se”.
Que falta lhe fazia ali um trabuco daqueles. Seu celular pega bem por ter mandado instalar antenas da Starlink no carro e por onde quer que ande, daí não ficar sem sinal do Amapá ao Rio Grande do Sul.
Assim, soube na hora que a agência de classificação de risco Moody’s contrariou a expectativa de o Brasil rever o grau de investimento. Não entende o que é, mas desconfia que seja mais uma armação que o chinês definiu horas antes como desculpa perfeita para regular a internet.
Depois da curta caminhada, não reconheceu o lugar a que chegara porque haviam tirado o toldo verde da carroça de lanches em que toma uma garapinha aos domingos.
— Traga também um café — pediu à garçonete, terceira fonte de renda da moça das flores. — Sei que está mais caro que o ovo, mas cobre aqui — entregou-lhe o cartão corporativo, 25% mais oneroso que o de seu antecessor.
Tomou devagar, o café descendo liso, a garapinha aditivada despencando pelas paredes da garganta. Sentiu que o olhavam. Eram o cubano Fidel Castro e o venezuelano Hugo Chávez.
Balbuciou qualquer coisa, a atendente perguntou se era com ela, o presidente acenou com a mão em que estava a rosa para dizer que falava consigo mesmo. Esmagou as pétalas. Estava se recriminando, afinal, via as figuras do Hades como castigo por, antes do primeiro gole, não ter homenageado São Jorge.
Quem o tranquilizou quanto a essas visagens foi o colombiano Gabriel García Márquez, que as chamava de fantásticas. Este texto é baseado em frases do início de seu conto “Boa viagem, senhor presidente”. Como o próprio escritor não cita o nome do protagonista, quem sou eu para supor de quem se trata.
Demóstenes Torres é ex-presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, procurador de justiça aposentado e advogado. É colaborador do Jornal Opção.
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